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Lições

11. Percorria a estrada com a cabeça de João Batista em cima da minha quando nos salta ao caminho um cão. Um diabo dum cão que nem era grande nem era pequeno e que ria à gargalhada. Não rosnou, ladrou ou ferrou, limitou-se a rir desabridamente enquanto apontava com a pata a cabeça do meu compagnon de route como quem escarnece e diz ser aquilo o mais ridículo que já viu na sua longa vida de seis ou sete anos. Por me deter, espantado com o duplo comportamento do animal, rir-se de nós, e por ser um cão que ri, ele aproveitou e sentou-se logo ao meu lado, desta feita como se sentam os cães e, enquanto amansava o riso, limpava as lágrimas com as patas e abanava negativamente o focinho. Era um cão rafeiro, de pelo baio muito curto, com as patas e a ponta da cauda brancas. Tinha as orelhas quebradas e caídas para a frente e olhos castanhos. O riso expunha lábios negros, assim como o dos leões. Mas sem os calafrios que felinos lábios causam a quem deles se avizinha, pelas razões óbvias, o cont

O que eu gosto de ver o mar

O que eu gosto de ficar a ver o mar Com as ondas a quebrar devagar Num infinito rodopio de carrossel Que nos leva o cabelo e arrepia a pele Está muito cheio este ar deste mar Do ruído das ondas infinitas a cavar Covas e peelings na areia que aguenta Com complacência e fugir não tenta Por vezes é Jah que espraia claridade De norte a sul espalhando felicidade Outras chega de Asgaard o encanto Que cobre a praia com cinzento manto São esses os dias de esplendor tão manso Onde o moço da cidade sonha seu descanso Rodeado de prédios velhos e sem história Aquece-o a praia que guarda na memória

Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –10–

A noite permanecia tão escura como misteriosa, o nevoeiro tão denso como uniforme, propiciando o surgir de todo o tipo de receios, medos e alarmes. Mais do que a visão assustadora de uma catástrofe eminente ou a face terrifica de um malfeitor como os que havia deixado para trás ou mesmo o galope temível de um animal, era a ausência de qualquer estímulo sensorial que o deixava, a princípio, incomodado e, pouco depois, e em crescendo, atemorizado. Se nada fizesse, entraria em breve num estado paranóico, condição psíquica contraproducente ao desígnio que o movia. O facto de nada ver, nada ouvir, não sentir sequer o fresco da noite na face ou do nevoeiro nos ombros, afectavam-no pela primeira vez. Sentia-se perdido e desperado e olhava e farejava e palpava em volta por referenciais, pistas, alarmantes que fossem, que lhe tirassem da alma a sensação de estar sozinho no mundo. Mais do que um tremor de terra, um assassino com um machado em riste ou um leão correndo para mim de boca aberta, er

O Guardador de Porquês

Jacinto guardava os porquês que encontrava nas pessoas nos acontecimentos nos dias e nas noites. Dominava a magia de ver para lá do óbvio e do circunstancial apresentando-se-lhe o porquê das coisas de forma tão clara e linear como ao mago é simples agitar lenços e deles fazer surgir brancas pombas que voando espantam a assistência. Como se não fosse suficiente tamanho dom Jacinto era capaz de neles pegar e guardar catalogados num frasco de fino cristal que trazia consigo. Tão fino e delicado era o cristal que tudo deixava passar sem mácula de distorção provocada por espessura ou concavidade irregulares. Tão pequeno era que nele tudo cabia sem que nada se perdesse num canto escuro ou numa gaveta emperrada. Os porquês aí guardados davam a Jacinto um á-vontade e postura únicos entre os homens. Tamanha biblioteca em conjunto com os porquês dos que o rodeavam e os seus próprios porquês desvendados permitiam-lhe ver mais longe e entender o que para outros não passava de extemporaneidade ou s

O Orbitador

A 12 de abril de 1981 o maravilhoso Eurico da Fonseca comentava o início do que seria uma das maiores aventuras e desventuras da história do século XX. Fazia-o com a solidez dum conhecimento adquirido através da perdida arte de estudar afincadamente e consolidado pela experiência e trabalho; a par, uma voz invulgarmente clara e sonante para quem não era profissional da voz e um domínio da língua materna robustecida pela leitura dos clássicos. Um senhor! Os comentários apocalípticos ficariam a cargo da Adelina , prima solteirona do meu pai e inesgotável fornecedora de já então velhos fascículos d'O Mosquito que, 30 anos volvidos, guardo escrupulosamente numa caixa, permitindo apenas relances a filhos e visitas da casa. Era o dia do lançamento do Orbitador, o Space Shuttle Columbia. Estava bom em Cabo Canaveral, tempo limpo e quieto. Em voz de filme, a contagem decrescente foi levada a termo e a pesada máquina libertou-se, pesadamente da Terra. Observei tudo em silêncio reverente e

Manual reeditado

O Manual do Suicida foi reeditado, em edição aumentada, dois anos após a sua primeira edição. Pode ser comprado nas livrarias Wook e Bookit. Se não o tiverem em stock, peçam que eles mandam vir mais. Pode também ser comprado online, em www.ediumeditores.org. Não há razão para dizeres que não tens porque não encontraste.

O meu coração vive como flor

O meu coração vive como flor Longe do caldo dos dias iguais Que me puxam para ao estertor De repetir cenas tolas e banais É o mundo que vem de encontro Ao delicado coração agitado Dá com um pau e faz escombro O que era ritmo compassado passa a ritmo fibrilhado Perde o seu vigor esta flor Verga seu caule e esmorece Pétalas perdem seu rubror É o coração que estremece Parecem assim ganhar os dias Em que nada se faz ou se vence As horas são como do pão fatias Que enfarta mas não convence Já me vejo perdido em um dia Maior que toda a minha vida Tão longo que fim não lhe via Tão cinzento que deixa ferida Chegam vozes de todo o lado Dizendo que assim é pouco E que o que faço está errado E melhor seria clamar louco Fecho os olhos e de pé atras Como se hesitasse por medo Como se tapasse que é atroz Como se fugisse ao arvoredo Hesito em começar a ver a vida Tapando os olhos ao seu furacão Fujo dela como se fosse bandida Que me quer roubar o coração Medo claro está, desdém decerto Fuga à razão de

Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –9–

A dada altura, adiantada a caminhada, o nevoeiro deu mostras de querer levantar. Não se ia embora, apenas se tornava menos denso, o suficiente para o deixar ver as bermas da estrada com maior nitidez. Nelas, acocorados junto a cada postalete reflector, aquilo a que, apenas por seus olhos grandes e encovados reflectirem mais que os postaletes reflectores, tomaríamos como pessoas, pois por estarem tão mirrados e tão cheios de chagas, veríamos como cão sarnento, despejo ilegal, saco d roupa velha atirado de um carro; um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Eram só quatro, mas muitos mais lhe pareciam, pois grande era a sua miséria, e tão presente era sua a dor que quis acometer-se do seu pesar, tratar as suas chagas, lavar-lhes a cara e dar-lhes de comer, mas não conseguiu. Antes os viu todos imundos, todos desdentados, todos burros, todos maus. Como surgiram assim, de repente? Um desses vermes nojentos, uma mulher a cheirar mal, desdentada, com peladas no que foi cabelo preto de

Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –8–

Conduzia muito concentrado. As duas mãos no volante, olhos presos à estrada em frente. Só a deixavam quando olhava pelo retrovisor, para ver a estrada atrás. Olhava muito pelo retrovisor. O que era de estranhar: Não encontras o que procuras no meio da noite, numa estrada que em não passava um único carro em horas ou dias, sei lá, depois daquilo das onze horas. Quanto tempo terei lá estado? Estiveste lá metido três dias. Pois estive; vejo agora que qualquer um deles tomou nove pequenos almoços e três snacks; usaram a casa de banho várias vezes, mas em três dessas vezes demoraram significativamente mais tempo. Mas não dormiam. Não; alturas havia que pareciam olhar para lá das luzes, como se procurassem a estrada. Mas nunca dormiam. Pensa melhor; se pareciam não dormir é porque andavam adormecidos. Sim; dormiam o tempo todo; nunca acordaram. Uma acordou; que lhe fizeram? Se não sabes, não sei. Pois. Sais aqui. Continuas a conduzir apesar de tudo. Sim; apesar de tudo, continuo. Obrigado e

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Não houve comoção (aquela da agitação ou abalo; não a do pesar ou pena), não vieram carros com pirilampos azuis em seu encalço, nada de cenas de perseguição em que rouba um carro a um pacato cidadão que prefere parar e deixar-se arrancar do assento do condutor a guinar e seguir viagem, nem fugas audazes por condutas de descarga ou simplesmente, deitar a correr a correr até os deixar todos para trás. Imagina que a ausência da polícia em seu encalço se fique devendo à surpresa do homem de fato, homem acostumado a que acatem suas ordens sem reparo ou viés; ao chegar acompanhado da polícia e não o encontrar, talvez tenha ficado petrificado, incapaz de compreender sua atitude. Os tiras, na ausência de prevaricador e de explicação para a razão para a qual foram chamados e, sendo onze horas, terão tomado um rápido café da manhã, com suco e bolinhos, pelo trabalho da deslocação, e feito uma admoestação ao homem de fato antes de regressarem ao giro. Se perguntou também se o poder da polícia ou

Acordei em sonhos perfumados

Acordei em sonhos perfumados Por golpes de amores-perfeitos Coloridos a lápis de rebuçados Na cama dos lençóis desfeitos Era céu e era dia que tal era O frio que fazia pintar a pele De rebuçado qual estola bera Restolho de Animal que geme Hoje não vou fico sempre aqui Qual estola de bicho rebuçado Vão-se todos e eu sempre aqui Tremendo ao ver o dia acabado Escorre pela cama o caramelo Em rolos grossos de estio vão Soa na alma a voz do camelo Vai mas é trabalhar mandrião

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Aceitei. Pode até ser noite para lá das luzes criadoras deste ambiente de permanentes onze horas da manhã. Posso continuar a achar que é noite, mesmo estando perante o atarefado local, mas o que se come ao pequeno almoço, seja uma ou duas sandes, acompanhadas de leite, chá ou iogurte, caem bem a qualquer hora do dia. Na verdade, a refeição é a mesma: um pão com manteiga e uma chávena de leite às 8h00 é, claro está, pequeno almoço; um sumo de laranja com um bolito seco lá para as 11h00 é mata-bicho; uma meia de leite e uma torrada às 16h30 é lanche; e uma tosta de queijo com iogurte às 10h00 é, dizem os miúdos, lanchinho da noite; ceia, dirão os adultos. Ora, qualquer uma destas pequenas refeições pode ser tomada como pequeno almoço, carece apenas que se goste e queira, daí que, sendo para eles onze da manhã e para mim sei lá quantas da noite, um pequeno almoço, fosse ele isso ou mata-bicho ou lanchinho da noite ou ceia, me cairia muito bem. Sirva-se. Tem ovos e salsichas, iogurtes e su

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Não era uma estação de serviço. Era uma sala, sem paredes, que potentes mas invisíveis fontes luminosas recortavam do resto, que era a noite, como tal nada ou tudo, ocupada com secretárias dispostas em forma de ilha, formando grupos de oito postos de trabalho por cada ilha. Estas por seu turno estavam dispostas em quatro colunas que começavam logo na berma da estrada e se prolongavam noite a dentro aparentemente sem fim. Havia num dos lados, por cada quatro filas de ilhas, fazendo as contas, dezasseis ilhas e 128 postos de trabalho, três portas; portas apenas, sem paredes que lhes dessem firmeza ou propósito. Duas seriam casas de banho, separadas de acordo com o género; uma terceira com o nome de alguém gravado no vidro do painel superior. Ao contrário da estação de serviço, aqui havia bulício. Gente matraqueava os teclados dos computadores que dominavam cada secretária; tocavam telefones e pessoas falavam por eles de forma ora elegante e pausada, entremeando o discurso com sorrisos e

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De volta à estrada, à noite e ao nevoeiro, calcorreava de novo o separador central. Andando absorto, pensava em como se manar, em como se baldar. Não será a vontade de se manar própria contradição, pois que manar a vontade é verte-la para que se se evapore, se extinga; ou, se não se extinguir, deixa pelo menos de nos pertencer para se tornar fazenda de outrem. E baldar; é preciso querer baldar-se. Baldar-se é uma entre várias opções. Aquele é baldas: porquê? não sabe mais?; não: apenas é sua vontade ser baldas. Percebia, se bem que de forma difusa e por ora incapaz de expor em discurso que o caminho que sentia já ser o seu dever seguir, acarretava, talvez mais do que qualquer outro, ponderada decisão e grande dose do coragem. O que mais do que aparentava ser contraditório com o propósito. Isto é, se o fim era o de abandonar-se, já a decisão de o fazer nada tinha de abandono ou casualidade. De modo que temia não poder seguir o conselho do pequeno homem por duas razões: a primeira porque

Haverá lições a reter da vida?
 Pode aprender-se com o passado?
 Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? -3-

A estação de serviço estava deserta. Nem carros, nem camiões a abastecer ou estacionados; apenas um gingle soprava pelos altifalantes colocados no alto das colunas que sustinham a cobertura das bombas desfazia a noção de que se tratava de um posto abandonado. A porta estava aberta, o que é estranho; pois o que seria de esperar seria um funcionário com cara de sono/medo/fastio (riscar o que não interessa) atras de um vidro à prova de bala, interagindo com os clientes por um postigo ou gaveta de vaivém. Não havia clientes, tão pouco bandidos ou ladrões, o que não é a mesma coisa. Na loja, coisas de loja, das que se vendem, das que expõem as que se vendem, máquinas que aquecem ou arrefecem as coisas que se vendem quentes ou frias e, ao balcão, melhor, no balcão, um homem muito pequeno com um fraque velho, cartola e guarda-chuva. Quando digo pequeno, não digo pequenito como um menino, digo aí com um palmo, vinte e cinco centímetros, no máximo. Tens um telefone? Para que queres tu um telefo

Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –2–

——Não te esqueças de começar pelo número 1; se já o leste ou tens preguiça, podes seguir lendo o número 2—— Desviou-se na direcção da nova estrada, andou uns metros até perceber que o clarão que vira da estrada principal se desvanecia a cada passo, perdendo dimensão à medida que ganhava nitidez, para se revelar nada mais que uma luzinha num nicho dedicado a Nossa Senhora. Deixou esmola, que está escuro e nunca se sabe e retrocedeu, tomando, de novo, o caminho da estrada. Na estrada principal, como seria de esperar, seguiu pela berma da esquerda. Estava na berma da esquerda. Não precisou decidir, a decisão apresentou-se-lhe como um facto evidente ou uma dedução lógica imediata, colocando-o numa das bermas sem arbítrio e sem esforço. Imaginava-se tranquilo, deslocando-se por entre a noite e o nevoeiro, livre do jugo da escolha, quando deu conta que não estava descansado, não caminhava em paz e de mente vazia como acharia que poderia fazer. Porque não fez uma escolha? Porque nem sequer co

Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –1–

Dava passos muito largos pela estrada fora. Era noite, estava frio e o nevoeiro espesso envolvia-o de frio e incerteza. Seguia a direito, pelo meio da estrada, incapaz de se decidir por qualquer das bermas. Qual delas a mais acolhedora? Eram bermas largas, sinalizadas por traços brancos, alvos, sinal inequívoco de terem sido pintados recentemente. Tinham a bordejá-las rails com resguardos nos pilares, exigência de quem se desloca de moto e teima em cair ao mínimo excesso de velocidade. Talvez não os que caíram, mas os outros, os que ainda não caíram e temem o dia. Não conseguia decidir-se por que berma a seguir. Se uma era boa, a outra também o era. Se uma era mais curta nas curvas para a esquerda, a outra era mais curta nas curvas para a direita. E parecia-lhe que havia tantas curvas para a esquerda como para a direita. De momento, nenhuma; mas por certo curvas haveria para lá da recta e do nevoeiro. Se numa toda a gravilha foi limpa, igual labor se teve com a outra. Se uma era asfalt

Oups!

Tenho andado calado, eu sei. Mas calma. Notícias para breve.

Um dia

Um dia, depois de todas as noites em claro e de todos os dias sem amparo. Um dia, para lá do choro, do desnorte e do ter que ser forte. Um dia, passados medos, incertezas, culpas e desculpas. Um dia, tu vais ver. Vais ouvi-lo dizer: Eu consegui; tive força e não fugi. Um dia, vais ver como se enfada ao perguntares pela namorada. Como vai lutar por um lugar. E falar, falar. Um dia vai chegar, em que terás orgulho em mostrar o seu nome num placard. Um dia… Um dia, olhas e não distingues os dois. Pois um dia, o passarinho de asa ferida será ave atrevida. Voará sozinho ou com alguém, e virá sempre à maminha da mãe. E a tua vida vivida será vida conseguida, de amor preenchida que nunca se deu por vencida. Um dia, fecharás os olhos e dormirás realizado, sabendo que o circulo fica fechado. Um dia, mais cedo que a tristeza te deixe agora ver, feliz tu vais ser. Certeza de quem pouco mais pode fazer do que vos amar.