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A mostrar mensagens de 2008

Nós, Esses e Eles

Nós somos o que melhor tem a sociedade. Nós somos bons cidadãos, pagamos os impostos todos e cumprimos as demais obrigações. Nós somos gregários, bons vizinhos, respeitadores do meio ambiente e fraternos para com as outras culturas. Aplaudimos os golos dos adversários, congratulamos os governos que não ajudamos a eleger. Nós não vamos às putas, respeitamos os cônjuges e os nossos filhos são os mais limpos e educados. Juramos de mão no peito, mastigamos de boca fechada, não jogamos, pagamos as dívidas, honramos os compromissos. Nós cumprimos horários, nós cumprimos o código da estrada, o civil e o comercial. Nós democratizamos o mundo, nós humanizamos a barbárie. Não somos como esses pretos que matam por um telemóvel e andam sempre agarrados à pila, ou como esses ciganos que nos roubam só de olhar para nós e conduzem como se a estrada fosse deles. Nem somos como esses romenos, vara de porcos, a cuspir para o chão, a mijar nos cantos e a meter medo aos nossos meninos. Nem somos como esse

Pessoa

Vivesse, o que seria espantoso mas não impossível nem inédito, Fernando Pessoa celebraria o seu centésimo, vigésimo aniversário. Trinetos ou outros parentes mais lá para a ponta de um ramo familiar tivesse, que bem lhe quisessem, e teria uma festa de anos. Ao ser encomendado o bolo de aniversário, os bufos da ASAE certamente delatariam o facto e a zelosa entidade obrigaria, durante a canção de parabéns e até a última vela estar apagada, a presença de uma corporação de bombeiros e que o bolo estivesse debaixo de um sistema de exaustão de forma a não comprometer a qualidade do ar interior. Pessoa, com as forças que lhe restam, ri. Só perde o bom humor quando pede um jarro de tinto e recebe uma dupla negativa: a da peniqueira, perdão, auxiliar à terceira idade, do lar onde habita há mais de cinquenta anos e a do inspector da ASAE destacado para a celebração. À primeira, a peniqueira, Pessoa ladra entre dentes que tem cento e vinte anos e que se morrer com o tintol no goto será um regalo.

O Daimon

– Porque é que escreves sobre suicídios? – Que coisa tão triste. Não percebo. – Dê a volta. Escreva sobre a vida. – Escreve sobre coisas alegres. Assim ficas deprimido. – Onde vais buscar essas ideias? – Vá lá. Escreva para os seus filhos… – Deixa esses pensamentos tristes que ninguém gosta de ler. E porque haveria de deixar? Haverá razão para dar ao desprezo do ‘não tenho tempo para isso’ ou do ‘isso nem vale a pena perder tempo a pensar’, razão para dar ao desprezo o aperto no coração de uma mulher, imaginária como tantas outras, que perde a sua amada? Em que é menor a dor de se sentir desterrada, perdida num mundo frio? Em que é vão o percurso de uma bala em direcção ao cérebro? Não se trata de dar voz aos que escolheram cala-la; não se trata de exorcizar sombrios fantasmas interiores que ameaçam a vida visível; nem tão pouco encontrar razões para lutar contra ou a favor do mundo. É apenas o Daimon que me fala. Esse que nasceu comigo, que nasce com todos nós, que nos guia pela vida

Nada como a dor

Estes humanos metem nojo no seu egoísmo galopante ao fazerem do medo da sua morte dor pela morte de outros humanos. Que coisa mais sobre apreciada a vida em toda a sua futilidade e apego ao vão de viver sob a ameaça da morte escondida. Felizes os vampiros que permanecem intocados não vivos perante a vida que se desmorona na inevitabilidade da morte dos vivos. Existência longa à não vida que é o que verdadeiramente existe pois que a vida não é mais do que efémera passagem de aspirações e sonhos inconcretizáveis. Eis-me vampiro puro não vivo repugnando os vivos e deles fazendo depender a minha existência e da vida deles extraindo o elixir que torna a eternidade tolerável.

a luta

a carta que queria ter-lhe entregue e do mar que começou por ser manso chão enormíssima onda de tumultuo se alevanta vento feroz redemoinho cortante vagalhão que mesmo ao mais valente a força espanta talha o rumo varre o convés aperta o coração a vida suga e esmorece e a morte agiganta e ao leme o homem de frio e medo treme e seus braços de puxar não podem mais e a boca gretada e seca suplica e geme e o mar atira-lhe com todos os temporais e o homem seus dedos dormentes apreme e grita ao mar revolto: JAMAIS! da terra a salvação também lhe é negada cães e lobos esperam-no cegos de raiva e afiam os dentes para o matar à chegada partem-se as tábuas e o convés s’esgaiva mostra-se o fim para que a’lma fique assustada somem-se faróis para que rumar não saiba este barco é minha vida e dele tenho emprego podes bufar e podes cuspir quanto susto há que nem que me torça e foda eu me entrego a vida que tenho é minha e não ta dou já do que sou e do que é meu eu não ablego porque grande é a vontade

15.1

Vou amar-te de forma ingente No futuro e no presente Vou amar-te como sempre o fiz Dos pés à ponta do nariz Ainda que a noite não tenha fim Mesmo que te tenha longe de mim Ainda que a luz do dia não chegue Mesmo que o escuro não despegue Vou dar todo o meu único corpo Ao teu dado todo único corpo E criar uma nova forma de vida Que pelos dois não pode ser contida E dessa nova vida que é o amor Nasce vida aos pares em flor Um menino de forma contida Uma menina de face florida E novo amor cresce e contagia Multiplica-se alastra e procria Já não são 3 nem 4 mas 18 Um canteiro de amor afoito A felicidade de o ver irado zangado Com o que sabe que é feio e errado O bom de vê-la compreender o que se diz Num pequeno ser a perfeição do ser feliz Em que fica então o amor original Será que tanto tempo lhe fez mal A trindade multiplicada e procriada Perder-se-á de tão fina e espraiada Nunca pois comunica o pensamento Nunca pois ampara qualquer lamento Jamais morrerá amor que é amizade Feito de car

O astronauta

Em 1969, os humanos, ou uma ínfima fracção destes, realizaram uma proeza que tenho por insuperável. Dando seguimento natural à sua impelente vontade, abandonaram as mais ou menos conhecidas paragens terrenas e partiram à conquista de novas fronteiras, fazendo pousar em segurança dois dos seus na superfície lunar. Observei a transmissão e fiquei estupefacto. Ver aqueles dois humanos, Armstrong e Aldrin, saltitando na lua como dois meninos desajeitados, guardando pó e pedras nos bolsos tal qual dois garotos do campo em visita de estudo à praia, fez-me curioso de experimentar as sensações vividas por tais senhores. Sabia, por ter visitado em tempos o centro espacial, que parte do treino para as caminhadas lunares era realizado em piscinas onde, dada a superior densidade da água, era possível simular com algum rigor a menor gravidade do satélite terrestre. Depois de empreender sobre a tarefa e muito planear, mandei costurar um fato espacial usando como modelo as imagens televisivas e fotos

tu não és tu pois não? (os maus cristãos)

quem sou senão quem posso ser quem posso ser senão o que querem que eu seja que querem que eu seja senão o que todos são que todos são senão o que não são que não são senão o que queriam ser que queriam ser senão quem são quem são senão quem não são quem sou senão quem não sou q.e.d. quem é aquela de espinha torta que abaixa o olhar submisso mas lá fora é fria que corta divide fere e nem dá por isso quem é aquela tão bacoca que ampara o santo pão mas quando o leva à boca revela língua suave de vilão quem é aquela tão recatada que no olhar só traz candura mas no quarto acompanhada se profana vende e desfigura quem é aquele que é sorrisos dentes brancos e afectos mas que morde até aos sisos as costas e enche os rectos quem é aquele que é moral exemplo firme de rectidão mas que mente e diz mal de tudo e de todos podridão quem é aquela que trabalha passa as horas aqui metida mas as outras abrutalha levando a vida abscedida quem é aquele que tão bom faz da vida partilha capital mas que esc

Esqueci

Quase já não me lembro do que era acreditar. O conforto de chamar por Deus; de pedir ajuda sem a desilusão da Sua indiferença; de agradecer por algo que podia ter corrido pior; de reconhecidamente me obrigar a pagar pela recompensa do meu esforço; de voluntariamente me diminuir perante o nunca visto e jamais percepcionado; de entregar o controlo das minhas acções a um indistinto crer; de consolar as mágoas na esperança de um avatar que sei nunca chegar. Praticamente esqueci o calor das orações, o regozijo dos cânticos, o enlevo da hóstia colada ao céu da boca, a plenitude do jejum. Perdi para a bruma da memória os nomes dos santos, dos espíritos e das divindades. Como era bom cantar a Hanuman em tempos difíceis – Vitória à tua vibrante força –; que paz dava rezar a S. Cristóvão ao atravessar as negras florestas – Livrai-nos, S. Cristóvão, da morte súbita, imprevista, natural, desastrosa ou violenta –; que luz irradiava das grávidas ao queimarem incenso na base do altar de Taueret – Mãe

Estibordo / Bombordo

… Noutras alturas o mar bate empurrado pelo vento, estropia-se nas pedras, faz salpicos que o vento empurra para a praia. O sol ladrilha tudo de luz esbatendo o verde para os cantos do mar, para os fundos da vista, para a crista das ondas no momento em que estas se consomem pela própria força. Só posso adivinhar o verde, dizes-me tu. Há um petroleiro lá; pousado no ladrilhado de luz; subjugado por dois rebocadores; amansada fera do alto mar. Pudesse ver mais do que apenas a sua silhueta e veria uma alma quebrada, cheia de medo dos rochedos e das correntes costeiras, com vergonha das amarradas lançadas pelos rebocadores. Nem imagina que para ser bom no alto mar, não o pode ser junto à costa e que precisa de ajuda. Bastou um silêncio e um olhar e contaste-me tudo. Como tu Estibordo sabes que Bombordo já não é teu. Sabes que o perdeste mas ainda o queres para ti. E olha, dizes. Olha a pérola que juntos criamos. Que só juntos podemos manter. Mas ele já lá não está. Ainda é o teu Bombordo m

Princesas e sapos

Da história importa lembrar que a princesa beijou o sapo e este se transformou num lindo príncipe. É sabido que viveram felizes para sempre na imaginação de crianças pequenas e crescidas e que este par mágico é ainda hoje o almejo secreto de muita princesa desiludida que não encontrou o seu príncipe porque o sapo que encontrou e beijou assim se manteve, ou o príncipe que desejou e beijou se transformou num sapo; e que este par mágico é ainda hoje o almejo secreto de muito sapo que já perdeu a esperança de se tornar num príncipe por acção piedosa ou caridosa de qualquer princesa, que os tempos, ao passarem, baixam os padrões e esbatem os limites. O que a história não nos diz é que a princesa beijou o sapo sabendo que ele era príncipe. E como este permaneceu sapo e príncipe e dono e senhor, a princesa entregou o seu corpo, para que o sapo dele cuidasse, mas não o seu espírito, nem os seus filhos que não os queria sapinhos. Buscou noutros, plebeus mas belos como ela, a progenitura para os