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A mostrar mensagens de junho, 2008

Pessoa

Vivesse, o que seria espantoso mas não impossível nem inédito, Fernando Pessoa celebraria o seu centésimo, vigésimo aniversário. Trinetos ou outros parentes mais lá para a ponta de um ramo familiar tivesse, que bem lhe quisessem, e teria uma festa de anos. Ao ser encomendado o bolo de aniversário, os bufos da ASAE certamente delatariam o facto e a zelosa entidade obrigaria, durante a canção de parabéns e até a última vela estar apagada, a presença de uma corporação de bombeiros e que o bolo estivesse debaixo de um sistema de exaustão de forma a não comprometer a qualidade do ar interior. Pessoa, com as forças que lhe restam, ri. Só perde o bom humor quando pede um jarro de tinto e recebe uma dupla negativa: a da peniqueira, perdão, auxiliar à terceira idade, do lar onde habita há mais de cinquenta anos e a do inspector da ASAE destacado para a celebração. À primeira, a peniqueira, Pessoa ladra entre dentes que tem cento e vinte anos e que se morrer com o tintol no goto será um regalo.

O Daimon

– Porque é que escreves sobre suicídios? – Que coisa tão triste. Não percebo. – Dê a volta. Escreva sobre a vida. – Escreve sobre coisas alegres. Assim ficas deprimido. – Onde vais buscar essas ideias? – Vá lá. Escreva para os seus filhos… – Deixa esses pensamentos tristes que ninguém gosta de ler. E porque haveria de deixar? Haverá razão para dar ao desprezo do ‘não tenho tempo para isso’ ou do ‘isso nem vale a pena perder tempo a pensar’, razão para dar ao desprezo o aperto no coração de uma mulher, imaginária como tantas outras, que perde a sua amada? Em que é menor a dor de se sentir desterrada, perdida num mundo frio? Em que é vão o percurso de uma bala em direcção ao cérebro? Não se trata de dar voz aos que escolheram cala-la; não se trata de exorcizar sombrios fantasmas interiores que ameaçam a vida visível; nem tão pouco encontrar razões para lutar contra ou a favor do mundo. É apenas o Daimon que me fala. Esse que nasceu comigo, que nasce com todos nós, que nos guia pela vida

Nada como a dor

Estes humanos metem nojo no seu egoísmo galopante ao fazerem do medo da sua morte dor pela morte de outros humanos. Que coisa mais sobre apreciada a vida em toda a sua futilidade e apego ao vão de viver sob a ameaça da morte escondida. Felizes os vampiros que permanecem intocados não vivos perante a vida que se desmorona na inevitabilidade da morte dos vivos. Existência longa à não vida que é o que verdadeiramente existe pois que a vida não é mais do que efémera passagem de aspirações e sonhos inconcretizáveis. Eis-me vampiro puro não vivo repugnando os vivos e deles fazendo depender a minha existência e da vida deles extraindo o elixir que torna a eternidade tolerável.

a luta

a carta que queria ter-lhe entregue e do mar que começou por ser manso chão enormíssima onda de tumultuo se alevanta vento feroz redemoinho cortante vagalhão que mesmo ao mais valente a força espanta talha o rumo varre o convés aperta o coração a vida suga e esmorece e a morte agiganta e ao leme o homem de frio e medo treme e seus braços de puxar não podem mais e a boca gretada e seca suplica e geme e o mar atira-lhe com todos os temporais e o homem seus dedos dormentes apreme e grita ao mar revolto: JAMAIS! da terra a salvação também lhe é negada cães e lobos esperam-no cegos de raiva e afiam os dentes para o matar à chegada partem-se as tábuas e o convés s’esgaiva mostra-se o fim para que a’lma fique assustada somem-se faróis para que rumar não saiba este barco é minha vida e dele tenho emprego podes bufar e podes cuspir quanto susto há que nem que me torça e foda eu me entrego a vida que tenho é minha e não ta dou já do que sou e do que é meu eu não ablego porque grande é a vontade