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A mostrar mensagens de 2013

Gostava

Gostava de chorar de maneira glamorosa sem olhos vermelhos, nem ranho no nariz, nem olheiras. Apenas duas lágrimas brilhantes deslizando pelo rosto, morrendo nos cantos da boca sorridente. Gostava de caminhar pela areia virgem da praia de inverno sem a perturbar e gostava de passar por entre as gaivotas junto ao mar sem as perturbar e ter em mim nada mais que o som das ondas para me embalar. Gostava de tocar a face das mulheres e dizer que são bonitas sem as preocupar. Gostava de ir à boleia de um surfista sem me molhar. Gostava que o céu se abrisse e chovesse sem parar. Gostava que o vento me empurrasse sem me derrubar. Gostava de ver o meu corpo feito barco a navegar. Gostava que o meu coração ficasse neste lugar.

SOL

E o Sol fala de?… Muito poucos são aqueles que vejo nascer. Quase todos nascem debaixo de telha. Quando não estou a ver, mas está ela, aquela que namoro há milénios num bailado incessante, também quase todos nascem debaixo de telha. Só os mais desprevenidos, os mais apressados ou os mais expostos dos expostos, eu vejo nascer. Dado que poucos são os que vejo nascer, tu, um bem nascido, não foste excepção: não te vi nascer. Apenas algumas semanas depois de nasceres e te assumires como indivíduo te vi pela primeira vez, e tu me viste a mim no que seria mais uma primeira vez de muitas primeiras vezes. Logo gostei de ti e imaginei, ao iluminar-te a face que, um dia, dedicarias a tua vida a fazer com que também eu nascesse, renascendo sobre uma nova luz. Uma luz que abriria portas, que forjaria lutas, que anteveria conquistas. Uma luz que no teu crepúsculo se recusava a esmorecer, mesmo perante o que parecia o recuar em toda a linha da tua vontade ao direito de todos dizerem: “–Ele nasceu p

Triste é o poeta por se confinar ao homem

Triste é o poeta por se confinar ao homem. Preso está o homem por ter em si um poeta. Que te encaram, homem e poeta, com diferentes olhos. Uns para olhar e outros para te ver, Uns para te querer e outros para te tomar, Ambos para dizer que te amam. Com beijos nos calas, com abraços baixas nossos braços. O teu amor mata-nos, faz-nos esquecer de nós. És o doce jugo que plácidos envergamos. És o macio cajado que meigamente nos impele. És a rutilante argola, que nos guia da confortante solidão. Pois é o teu amor que nos mantém vivos. De ti, em ti, por ti. Só tu, pelo nosso amor, és o esteio da razão. Farol brilhante, Aquecendo os frios penedos, Iluminando as ondas, Relevando os escolhos, Desvelando os sentimentos mais profundos. Quando longe de ti estamos, E somos apenas homem e poeta, É em ti que pensamos, É por ti que a vida se completa.

Hoje acordei com vontade de me levantar

Ao sentir-me desperto, Acelerado pela luz que em mim entrava vinda da janela cuja persiana ficou em enrolado esquecimento, Cresceu em mim uma vontade tumescente que me impelia para longe daquela doçura que é o conforto absoluto de uma cama dormidinha, Onde a noite termina com um resignado regresso à vida. Agarrei-me a ela e para ela me voltei, Mas ela já lá não estava, Desaparecida, Deixou fria, A sua alma levantada. Frios estavam também os lençóis do lado dela, E frio estava o saldo da sua cabeça na almofada, Voltei-me de barriga para o ar e olhei a janela, Desanimado com a perspectiva de a perder para sempre: o seu sorriso; os seus beijos; os seus abraços; a nossa vida partilhada. Restava-me a vontade, De me levantar. Queria saber as horas, Saber qual a extensão numérica do desvio ao ritmo habitual, Hábitos analíticos enraizados na mais poética e madraça das almas. Mas não conseguia abrir os olhos. Pesavam-me as pálpebras cansadas,

Diferenças

Sabes a diferença, meu amor, entre ser e estar? Como passámos do que fomos ao que somos. A partir de que momento nos tornámos nós e deixámos de estar sós. Sabes a diferença entre a sede e o consolo, entre a fome e a saciedade? Ainda te lembras como distinguir entre a vontade e o desejo, o vazio de perder e a felicidade de encontrar. Sabes ainda, meu amor, distinguir entre os beijos meus e os beijos teus? O tempo fez-nos outros. O tempo, ora leve, ora pesado, foi tempo e deu-nos tempo para continuarmos a fazer o nosso próprio tempo e forma intemporal. Parece que nunca tanto, meu amor, passou em tão pouco tempo. Ainda te lembras, meu amor, de fecharmos os olhos e vermos como seria o mundo?

Penedo

A fábrica De ser rochedo É atávica Ser penedo Nada mais tem que resistir. Sem outro propósito ou expectativa senão a de perdurar. Aguentar os ataques do mar, da terra e do ar. Estóico, seráfico, é o rinoceronte do reino mineral. Cumpre escrupulosamente o que dele se espera. Glorificam a sua perenidade, a sua autenticidade, a sua eternidade. Só os geólogos sabem que não é bem assim. Mas os geólogos são poucos e ninguém lhes liga.