Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –10–

A noite permanecia tão escura como misteriosa, o nevoeiro tão denso como uniforme, propiciando o surgir de todo o tipo de receios, medos e alarmes. Mais do que a visão assustadora de uma catástrofe eminente ou a face terrifica de um malfeitor como os que havia deixado para trás ou mesmo o galope temível de um animal, era a ausência de qualquer estímulo sensorial que o deixava, a princípio, incomodado e, pouco depois, e em crescendo, atemorizado. Se nada fizesse, entraria em breve num estado paranóico, condição psíquica contraproducente ao desígnio que o movia. O facto de nada ver, nada ouvir, não sentir sequer o fresco da noite na face ou do nevoeiro nos ombros, afectavam-no pela primeira vez. Sentia-se perdido e desperado e olhava e farejava e palpava em volta por referenciais, pistas, alarmantes que fossem, que lhe tirassem da alma a sensação de estar sozinho no mundo. Mais do que um tremor de terra, um assassino com um machado em riste ou um leão correndo para mim de boca aberta, era o facto de estar pela primeira vez completamente só que me estava a virar o juízo. Cansado de procurar e prestes a ceder ao nada, prestes a incorporar o vazio exterior como sustentação única da minha própria existência e, por via disso, perante a minha última escolha, emana um brilho argentino que capta a minha atenção: - Olá João Baptista. - Olá. Não deve ser difícil saberes quem sou. Hesito porém em arriscar o motivo porque estou aqui, diminuído, nesta estrada; será por ser o anunciador de Jesus Cristo, nosso Senhor, que baptizei nas águas límpidas do Jordão? - Acho que não. Talvez estejas aqui por seres uma vítima da frivolidade ou da indiferença; atalhada a tua vida da mesma forma ligeira que assiste ao urso que assalta a colmeia, as abelhinhas que morrem, espalmadas às suas patas cruéis, perdidas com o mel na sua fauce negra. - Tomas-me por abelha. Sou assim tão insignificante? - Pelo contrário; digo apenas que sendo abelha, o universo é diferente do dos homens e nada é mais importante, para uma abelha, que a sua raínha, as outras abelhas e o mel. Reconhecerá isso o urso ao alimentar-se do mel da colmeia? O bicho poderia sem esforço e sem que por isso o rotulássemos de excepcional, poupar as abelhas durante a recolha do mel, enxotá-las, não as espalmar, retirar destramente as que ficarem presas na boca. Reconhece o urso, apesar de o ser, que são as abelhas que produzem o mel que tanto gosta; porque não sente então que as deveria proteger, se não por respeitar a sua dignidade, mas para assegurar, ainda que egoisticamente, o seu próprio sustento. No entanto o urso nem as vê, é como se não existissem. Sei que és o Messias, o anunciador de Ptahil mas, coloca-te no lugar de Salomé, o seu universo é o dos Herodes, dos palácios sumptuosos e do luxo, tu estás numa masmorra que ela nunca viu, és um nome que ela nunca ouviu pronunciar até que é tua mãe que to pede: "- Filha! Este homem é perverso, prega falsos Deuses, exorta o povo contra os seus soberanos." Que fazes tu? Dançaste, agradas à tua mãe e arrelias um pouco o teu tio. - Percebo porque estou aqui. Mas porque estou eu e não outro? Porque não Evariste Galois ou Gaudi? Estes homens morreram por uma frivolidade do destino, impedindo a conclusão do seu legado à humanidade, quer fosse uma equação do quinto grau, quer fosse uma catedral que ensombraria tudo o que foi feito até então e marcaria o que se faria depois. Percebo porque estou aqui e qual a minha função nesta estrada, só não percebo é porque é que eu fui escolhido para representar o que represento. - Se achas que serei eu a dar-te a resposta é porque achas que a razão para aqui estares deve-se a mim, a uma escolha, ainda que inconsciente, feita por mim. - Não é esta a tua estrada? És tu que a calcorreias, portanto é tua. - Nunca achei que fosse minha. - Mas é. E, como tal, é de tua responsabilidade. O que me leva a perguntar-te novamente: porque estou aqui? Ficaram então, por vontade maior que a sua, os dous muito quedos, guardando-se a espaços, e como se ao tempo falecesse fábrica e os tivesse jogado à mercê da graça divina que, por em tão elevada conta ter um deles, aos dous destacou do sítio onde cuidavam assentar pé um, pescoço outro, abrindo-lhes as portas do firmamento, onde penetraram e ficaram, pasmos a princípio, puros logo depois, no refrigério de escutar os anjos tagarelando no entretém de guiar a máquina do mundo. Tanto ou tãopouco tempo depois, que rasgo não tiveram para contar o tempo corrido, ele, mais ledo e vizinho da estrada, mas ainda com os sons celestiais embalando-lhe os ouvidos, chama: - João Batista? - Sim. - Se eu te colocar em cima da minha cabeça, ensinas-me a caminhar sobre os campos de trigo? - Sim. Sim!

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