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A mostrar mensagens de 2010

Se as festas fossem boas…

Se as festas fossem boas, Saramago veria seu delírio concretizado. Se as festas fossem felizes, não haveria Natal dos hospitais. Se o Natal fosse bom, não haveria jantar de Natal dos sem abrigo. Se o Natal fosse feliz, não haveria campanhas de Natal solidário, onde animais com ar parvalhão nos impingem cachecóis, livros ou CD's. Ainda assim insistimos em desejar a todos um bom Natal, a todos festas felizes, seja amigo ou conhecido, estranho vizinho, empregado de café, parceiro de autocarro. Deseja-se bom Natal entre passas de um cigarro. Tenha um bom Natal, diz para não ficar mal. Para não ser deselegante. Parece sentido mas com a face é dissonante. E se sabe de alguém a quem outro faleceu, pergunta de forma leviana: que Natal será o seu? O dele, do outro, a quem falta agora um pedaço, pois que ele di-lo com os filhos no regaço e a mulher na cozinha, vergada a espinha; enterrada em rabanadas e panelas a fumegar. Despacha-te que o Pai Natal está a chegar. Chega o tipo e é uma fraude

O som nada melhor que as pessoas

O som nada melhor que as pessoas. Por isso, os dias de chuvas ouvem-se melhor. São um caleidoscópio de sonoridades: os pneus dos carros assemelham-se a regatos incessantes; a água que escorre das estruturas está por todo o lado, embalando-nos num embalo lento. O sol não está cá para chatear, e isso é bom. Fosse só por isso, e já valeria um dia de chuva. Aproximo-me do balcão inferior da gare, esperando o comboio que me levará ao colo da mãe. Tantas cores tem este dia cinzento: os autocarros que volteiam as ilhas do terminal são azuis, por acaso são brancos com riscas, mas soam verdes; as gotas que pingam de tudo que fique quieto por mais de cinco segundos, são como fagulhas vermelhas; os pneus dos carros rolando sobre a estrada ensopada são verdes, verdes como um milheiral ao vento. Já a luz dos faróis espelhada no asfalto faz lembrar o doce ondular da meia-praia: chuá... chuá... Aproximo-me da escada rolante. Deixo subir o fumo que me precedia e assomo à plataforma: da maneira que cho

É espinho no flanco

É espinho no flanco Uma bofetada na cara É noite em branco Uma dor que não pára É um pé na poça Outro espetado na lama É frio que roça Tempo a mais na cama É caca caindo Caca de cão espalhada É o ar fugindo da garganta esganada É ansear o abismo A vontade de desligar É acordar num sismo A vida quase a acabar É amor que se testa Subida com inclinação É o dia que não presta Dor aperta o coração É a noite tão fria A manhã que não vem É a alma vazia A mesa sem ninguém É comer sozinho Dormir no meio da praça É o velho caminho Dizer piada sem graça É maçã estragada Peixe que cheira mal É flor arrancada Cérebro vegetal É o fugir da vida Por dedos partidos É arma escondida Dando tiros perdidos É cão que morde 15 minutos de fama É sol que se esconde É a lama é a lama É o erro fatal que sempre se chora É apodo do mal Foge de quem adora …continua

É no nicho mais pequeno, pouco mais que gota de veneno

É no nicho mais pequeno, pouco mais que gota de veneno, que está o António que é santo feito de pau mas não de pau feito, pois diz-se que nem em vida lhe deu dito efeito. Ajoelha-se a penitente em pranto e pede ao santo que lhe dê o pouco que lhe saiba a tanto; basta que ele olhe para ela quando passa, nua, à sua porta e que não lhe ponha cara torta de quem vê e desdenha, que um dia sua vida terá resenha em livro de história, estará presente na memória dos que ali viveram e disseram: ai a Ermelinda, nem santo António lhe valeu, tanto pediu e o amor não lhe aconteceu; a vizinha que é nova no bairro e desconhece a tragédia, troca as voltas e toma-a pela galdéria que lá vivia e fugiu com o marido da interlocutora; os socos servem para calçar e atirar à cabeça, pois seja; já outra se ajoelha e também pede, mas não amor, desse já tem quem lho dê com fartura; esse que amor lhe deu, bebeu e agora paga a factura: está doente e a morrer, tão mal que mais um dia é notícia de jornal que se fecha

A dúvida

imagino que os homens temem e destratam as mulheres por nunca saberem se elas querem ser a mãe dos filhos deles ou que eles sejam os pais dos filhos delas.

Há uma aranha na minha casa de banho

Há uma aranha na minha casa de banho Escondida entre a torneira e o azulejo Vive no medo do seu pequeno tamanho Por isso só no sossego da noite a vejo Faz uma teia pequena e sua forma é tal Que qualquer bicho que tolo por ali passe Percorre descontraído um caminho fatal Pois não há nada que a aranha não cace Quando a casa está escura em sossego e paz E os meninos dormem felizes e enroscados A aranha em corrupio pelo rabito traz O fio que compõe na teia os fios rasgados Traças, moscas e muitos bichos-de-prata Encontram aqui o triste fim da existência Mas não condeno a forma como os mata Pois não há maldade mas só sobrevivência Vive aranhinha entre a torneira e o azulejo Num canto perdido da minha casa de banho Esquece o mundo lá fora e renúncia o desejo De seres a aranha que esquece seu tamanho Calma lá aranha que eu nunca te farei mal Foi apenas um suspiro que foi ter contigo Sou teu servidor muito dedicado o mais leal Nada disse a ninguém que fizeste aqui abrigo Vejo-te às vezes tão q

A falta de sentido

Poderá a escrita valer por si própria? Poderá o texto ter valor meramente estético? Não ser portador de mensagem, não contar uma história? A promoção da saúde é boa para quem toca alaúde. Os fornos Ramalhos nunca deveriam estragar soalhos. E aquele homem que passava muito tempo nas paragens, nunca ninguém o viu entrar ou sair do autocarro. Numa mão segurava um guarda chuva (fizesse sol ou fizesse chuva), na outra, sustinha uma saqueta de plástico, meia enrolada, apertada pela boca. Um rapaz passava sempre pela montra de trás da tabacaria que dava mais compostura à paragem e fazia dela mais do que um cais de embarque e desembarque. Ali se comprava tabaco, senhas do autocarro, chiclas e rebuçados, jornais revistas – também aquelas na montra de tras que o rapaz não se atrevia a comprar –, isqueiros e fósforos, lenços de papel; as revistas de novelas, de mexericos, de carros; a Dragões e os jornais desportivos; vendia brinquedos – não que alguém os comprasse –, carrinhos e bonecas; ah, hav

A razão da escrita

Foram as correntes privadas de candelabros que pendiam das abóbadas do convento de Mafra que me fizeram escritor. Não foi a escrita dura sobre gente dura em Levantado do Chão, nem o humor velado, quase inglês, d'O Evangelho Segundo Jesus Cristo e de Caim, nem os amores de Blimunda e Baltazar, nem as almas que recolhiam. O que me fez escritor foi a janela que Saramago abriu em mim e me deixou ver aquelas correntes baloiçando, animadas por mãos criminosas, perdidas no silêncio do Templo, dizendo aos frades estremunhados: " foi por pouco, foi por pouco ". Sem desrespeito pelos que sentem a perda do marido, do pai, do amigo, eu que não o conhecia senão pelo seu legado, não sinto pena nem dó. Rejubilo por saber que se extinguiu um homem que não viveu em vão. Este homem marcou, faz diferença no mundo; faz rir, faz chorar, despertou consciências, paixões e ódios; por ele e contra ele se lutou e luta. A morte é irrelevante à sua vida. Saramago vive.

Coisas há que a escola nunca ensinará

Nem deve. Contava-me um amigo que quando um caçador incapacita uma presa e um segundo caçador a mata, este entrega a presa ao que primeiro disparou, recebendo dele um cartucho. Este acto de cortesia um de muitos do código de conduta da caça, não poderá nunca ser ensinado na escola. Em primeiro lugar, por razoes óbvias. Embora para alguns fosse motivo de gáudio, o manejo e emprego de armas de fogo em recinto escolar, tal medida faria torcer o nariz, o bigode e demais pêlos, a muitos pais e educadores. Em segundo lugar, porque estas coisas são para passar de pai para filho, de avô para neto. São aprendizagens pelo exemplo, em que palavra alguma é trocada, explicação alguma é fornecida, onde a razão do costume é cabalmente explicada pelo bom senso, pela educação e pelo respeito pelos outros. Desprezo a caça desportiva, mas vejo neste e noutros preceitos que a cultura de contratualização de serviços esqueceu, importantes alertas: entregar à escola a educação dos nossos filhos é, ao não lhe

Apresentação do livro "Manual do Suicida"

Vou estar no Sábado, 29 de Maio às 17h00, no Museu do Douro – Peso da Régua, para apresentar (e autografar) o " Manual do Suicida ". Apresentação integrada no III Encontro "Sementes de Leitura e Artes" . Uma promoção da Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti. Co-promoção do Museu do Douro – Peso da Régua. Conto com a tua presença. Mais informações em: www.esepf.pt .

Nada é mais triste que um céu azul

Nada é mais triste que um céu azul Azul de ponta a ponta sem mácula Que se lhe aponte só e sempre azul Nem mesmo o sol que é um crápula Egoísta que brilha tanto que ofusca Tira tanto quanto dá e não se deixa Amar nem tocar por quem o busca É muito enfadonho o dia bom porque Ausentes mistérios para eu desvendar É igual de ponta a ponta sem destaque Sem nuvens nem sombras para amar Venham então as nuvens das cerradas Às de algodão em rama em camadas Brancas cinzentas pretas ou douradas De manhã ou pelo fim do dia reveladas Espraiem-se as sombras pelas paredes Estiquem-se em refrescantes verdes Fazendo o fresco milagre de nos dar Um sítio ameno para do sol escapar Dia feliz o dia em o sol não é o juiz Vida contente se se esconde da gente As nuvens desfiadas fazem-me feliz Num tempo sem horas de presente Os fios de luz bordados em cima do mar Perto de mim e impossíveis de alcançar Elevam-me para lá das nuvens nos céus Coladinho ao que quer que queira deus Morre o sol por hoje e ficam as nu

Fuck’in eden

Sonho descobrir um lugar que conheço há muito, muito tempo; Um sítio onde não tenho idade, porque tem piedade o tempo que a cada minuto arranca o fulgor da juventude encarcerada na mente enlevada, não importa o que aconteça, sem que se meça, ou se mande medir, os contornos dos actos e as suas sombras no porvir; Um lugar onde as magnólias estão sempre em flor, onde nunca está frio nem nunca está calor, onde, como um rio que corre para cima como o amor, não há dor nem louvor, somente o clamor da calma que pela alma vai desfiando um fluir soprando uma paz borbulhando; sento-me na relva; Numa clareira no meio da selva, verde refrigério do caminhante errante que se perde e ali se reencontra e lava a sua dor, come laranjas de sua cor, em laranjeiras bordando as franjas em redor, para lá da selva verde; Os gatos fisgam melros, saltam-lhes furtivos após rastejares esquivos, tirando as garras da doçura das patas fofas e eles fogem, não os gatos, os melros coitados, alam com estridor, fo
Imagem
Gosto que me mordas com dentes-de-Leão.

Dormias quieta na rede

Dormias quieta na rede animada tão só pela brisa e eu olhava para ti com a sede dum sonho que de Vénus desliza Via-te tão quieta de pegar tão fácil que se me incendiou a alma não resistindo ao desejo táctil toquei-te com a mão, só a palma Tu bela Helena e eu vibrante Páris perdida tu num sonho do dia-a-dia e eu acordado cruzando os mares procurando-te seguia do alto da vigia Por fim dás ares de revolta incomodada pela tensão recompões a roupa solta fugindo à opressão da mão Dás conta de mim quentinho demoraste para a acordar Então mostraste-me o caminho que os dois quisemos trilhar Finalmente abres teu o rosto trazida a mim pelo desejo abraçando-me tomas-me o gosto num longo e delicado beijo

O Urso de Pelúcia

Ao que parece, um erro de publicação, impediu os ávidos leitores de tomarem contacto com O Urso de Pelúcia. Pois bem, aqui está uma forma de o fazerem. Desta vez sem erros e de fácil leitura. Ler O Urso de Pelúcia