O Guardador de Porquês

Jacinto guardava os porquês que encontrava nas pessoas nos acontecimentos nos dias e nas noites. Dominava a magia de ver para lá do óbvio e do circunstancial apresentando-se-lhe o porquê das coisas de forma tão clara e linear como ao mago é simples agitar lenços e deles fazer surgir brancas pombas que voando espantam a assistência. Como se não fosse suficiente tamanho dom Jacinto era capaz de neles pegar e guardar catalogados num frasco de fino cristal que trazia consigo. Tão fino e delicado era o cristal que tudo deixava passar sem mácula de distorção provocada por espessura ou concavidade irregulares. Tão pequeno era que nele tudo cabia sem que nada se perdesse num canto escuro ou numa gaveta emperrada. Os porquês aí guardados davam a Jacinto um á-vontade e postura únicos entre os homens. Tamanha biblioteca em conjunto com os porquês dos que o rodeavam e os seus próprios porquês desvendados permitiam-lhe ver mais longe e entender o que para outros não passava de extemporaneidade ou sisma.

Um dia porém, faltou a Jacinto a sua mão, o ombro em que se apoiava, a seara onde semeou a sua melhor colheita, a usina da vida que fabricou e não conseguiu ver o porquê de tal coisa, voltou-se para si e em si procurou os porquês, verteu o frasco dos porquês de todos os que conhecera por sobre a cama, e todos os porquês de incontáveis vidas espalhados e depois colados à parede de forma ordenada não lhe deram resposta alguma, não encontrou um único porquê; porquê, perguntava-se olhando a parede do quarto onde tinha disposto e categorizado os porquês acumulados, parede negra, carregada que escurecia o quarto e Jacinto, quando um ténue clarão parece querer fazer frente à imensidão da negrura.

É um magro consolo que capta a atenção de Jacinto, o consolo da Salvação que, sem que saiba porquê, se torna incontornável. Atento, procura no consolo um porquê que sabe de antemão não encontrar. E ao compreender que não há um porquê, o consolo já não é assim tão magro, refulge e conquista a parede do quarto, esbatendo os porquês de muitas vidas e iluminando a de Jacinto. No entanto Jacinto é fraco e ainda sofre por querer saber porquê e o consolo recua um pouco e emagrece. No entanto, apesar de magro, existe e não vai embora nunca.

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