Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –8–

Conduzia muito concentrado. As duas mãos no volante, olhos presos à estrada em frente. Só a deixavam quando olhava pelo retrovisor, para ver a estrada atrás. Olhava muito pelo retrovisor. O que era de estranhar: Não encontras o que procuras no meio da noite, numa estrada que em não passava um único carro em horas ou dias, sei lá, depois daquilo das onze horas. Quanto tempo terei lá estado? Estiveste lá metido três dias. Pois estive; vejo agora que qualquer um deles tomou nove pequenos almoços e três snacks; usaram a casa de banho várias vezes, mas em três dessas vezes demoraram significativamente mais tempo. Mas não dormiam. Não; alturas havia que pareciam olhar para lá das luzes, como se procurassem a estrada. Mas nunca dormiam. Pensa melhor; se pareciam não dormir é porque andavam adormecidos. Sim; dormiam o tempo todo; nunca acordaram. Uma acordou; que lhe fizeram? Se não sabes, não sei. Pois.
Sais aqui. Continuas a conduzir apesar de tudo. Sim; apesar de tudo, continuo. Obrigado e boa viagem.

Ao vê-lo arrancar sentiu-se incompleto. Como se tivesse ficado no carro, percorrendo a estrada a um ritmo acelerado. Desta vez não hesitou, numa diagonal larga retomou a marcha aproximando-se a cada passo do traço contínuo do meio da estrada. Optou desta vez fazer aquilo que chamaria mais tarde, uma aproximação tangencial. Assim, a cada passo fazia uma sucessivamente menor inflexão da trajectória no sentido da paralela do traço contínuo da estrada. Sem estar mais longe, há medida que progredia, sentia o meio da estrada cada vez mais fora do seu alcance. Podia numa inflexão ligeira, dar um jeito à esquerda e depois, já a cavalo do traço contínuo, anular a inflexão à esquerda com uma de ângulo igual mas de sentido oposto, ou seja, dá-va um jeitinho pr’à direita. Mas não o podia fazer. Tinha traçado um plano: fazer a aproximação ao traço contínuo que separa a estrada segundo uma tangente (ou lá o que isso é). E haveria de fazê-lo, nem que isso lhe consumisse a eternidade o que se lhe afigurava pouco, pois se naquele bocadinho das onze horas se passaram três dias, quantos milénios não terão decorrido desde que começou a andar? Tentou fazer as contas ao tempo decorrido. Podia cronometrar a passada em função dos traços e depois multiplicar pela soma dos traços que já galgou. Mas não, não dava. Por vezes a linha era contínua e não tinha contado coisa nenhuma desde que começou a andar. Podia medir as sucessivas curvaturas das sombras da Terra projectadas na Lua e calcular assim o número de dias. Mas não, não dava. O nevoeiro mantinha a Lua e, de resto, todo o firmamento, para lá do seu alcance. Sabia de outras ocasiões que a Lua e as estrelas estavam lá no alto, via-as, maravilhava-se com elas. A lua ajudou-o um dia a encontrar uma lente de contacto num berma de estrada. Foi há muito tempo, no tempo das lentes semi-rígidas, aqueles pedaços de vidro que os oftalmologistas nos espetavam nos olhos, dizendo que era o futuro e que os óculos iriam acabar. E as estrelas, tantas vezes as viu e as apontou procurando a Ursa maior. Mas agora não tinha como provar que assim era e, por essa razão, via-se incapaz de calcular o que quer que fosse. Podia somar os tempos dos desvios que fez, porque a esses tinha-os presentes e quantificados – três dias na Ultra Mega Mais, meio dia na estação de serviço e duas horas para alcançar o nicho e regressar de imediato à estrada –, e obter assim um número bastante aproximado do tempo despendido na estrada. Mas não, não podia. Ou melhor, podia, mas não era o que queria. Esse cálculo dir-lhe-ia apenas quanto tempo passou em desvios feitos por esta ou aquela razão. Nada lhe diziam sobre o que necessitava saber: há quanto tempo caminhava e, por acréscimo e simples cálculo, que caminho percorreu. Por se manter fiel à função tangente, o traço contínuo estava agora mesmo ao seu lado. Bastava deixar o pé esquerdo desviar-se um poucochinho para fora e estava calcado – alcançado – o traço contínuo. Havia algo em si que o puxava e chamava o pé, quando este, aéreo, largava da estrada e voava, ultrapassando o direito e indo aterrar mais à frente, completando um passo. O pé até queria ir, virava a biqueira para fora, como que a olhar ou a tactear o ar na direcção do traço contínuo. Ao aterrar porém cedia ao poder discricionário da estranha aliança entre a mente e o resto do corpo, e lá ia ele, contrariado mas obediente, pisar o risco imaginário da tal aproximação tangencial.

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