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A mostrar mensagens de 2007

Os cães da minha vida

Há muitos anos, antes mesmo de me tornar vampiro, num tempo em que ainda vivia mas ainda não sabia o que era viver, ou estava então aprendendo a viver, passaram três cães pela minha existência. Os três animais foram contemporâneos, dois partilhavam o espaço em frente à minha casa e outro as traseiras. Ringo, o Respeitado (1/3) Ringo era um daqueles cães que faz lembrar qualquer coisa mas que não tem nada a haver. Parecia um doberman. Era preto como os doberman, tinha o focinho de cor creme como os doberman e as patas de igual cor como os doberman. Mas não tinha nada a haver com um doberman. Era apenas um rafeiro bem parecido, se calhar com alguma linhagem, talvez o fruto em primeira ou segunda geração do desvelo de um cão nobre com o devaneio de uma cadela plebeia; ou o inverso, no que toca a género. Nunca soube o que era ou se era sequer possível. Se teve avoengo fidalgo, dele herdou gosto para a modorra e garbo sem sentido. Só perdia a compostura para com o carteiro. Corria para ele

O homem da sala das raridades

Lembro-me de uma fugaz passagem pela corte do Rei Sol. E desse tempo embrenhado em futilidade e maquinação como nunca antes havia visto, recordo um episódio de descoberta e espanto. A corte de Luís XIV era, entre muitas outras coisas, abrangente. Nela podíamos encontrar toda a sorte de vilania e bajulação; nobres ricos e poderosos e nobres tão desgraçados como o bretão que lhes segurava o balde da urina não fosse o título herdado e que, vai lá saber porquê, lhe clareava a pele, exacerbando as veias azuis, o sangue azul, e o meu desejo de o sugar. Aliás, só me alimentava da nobreza. Encontrava nas donzelas alvas deleites raros na minha condição: apertava-as contra o meu corpo frio, voltava-as e espremia-lhes os seios pequenos, ou grandes. Acariciava-lhes o ventre, o rego do peito, as omoplatas e, perto do êxtase, cravava-lhes os dentes. Gemiam ao sentir a mordida para se arrepiarem e desesperam tarde de mais. Na corte do Rei havia também uma cornucópia de artistas, músicos, bailarinos,

Como avaliar?

Tenho cada vez mais dificuldade em avaliar as acções dos humanos. Poderá a grandeza da tarefa ser medida em função exclusiva do mérito do agente? Poderá este agigantar-se apenas porque fez algo grandioso? Deverá julgar-se o agente pelo impacto que criou por via da acção que empreendeu? Onde está o valor, a bravura, o esforço? Como será acolhida a promessa da fartura aos famintos? Que adesão terá a promessa de derrube dos poderosos perante os oprimidos? Que obstáculos encontrará o que incita a melhores condições de vida dos excluídos? Que valor terá o agente que impele os chaguentos a exigirem cura? Que quê a mais tem o pai que ama os filhos? Onde está a coragem do que trabalha e contribui? Que extraordinário há em mudar o mundo, quando este pede para ser mudado? Que glória há nos que dão aos que precisam? Como separar o heroísmo do egoísmo? 
Como separar o sacrifício do egoísmo? Quem é afinal louco? 
Quem é afinal valoroso?

O homem de metal

Havia um homem que corria a cidade de Bíblia na mão. Era velho, sujo, desgrenhado, irascível com os transeuntes, falava alto e de forma inconveniente, cheirava mal quando, no inverno, a chuva lhe ensopava o corpo e cheirava mal quando, no verão, o sol lhe sobreaquecia a ossatura. Ninguém o queria por perto, as crianças e as mulheres, as menos afoitas, fugiam dele; as mais rijas e os homens mais machos ofereciam-lhe porrada; os mais maricôncios mudavam de passeio ou alargavam o passo para o despistar; eu, adorava-o. Por causa dele e porque tinha o péssimo hábito de se embebedar pela maré do chá e apagar a um canto durante a noite toda, obrigou-me a algo, que não me matando, não me agrada nada e que é andar por aí durante o dia. Seguia-o discretamente para que não estranhasse ele, nem estranhassem outros que tamanho vagabundo fosse alvo de cerrada perseguição. Por várias vezes tentei falar com ele na rua, sob esta ou aquela forma, para que não percebesse, mas só levava com acenos de Bíbl

A santa

Há uns anos, já não sei bem há quantos mas poucos, li num jornal que para os lados de Gondomar, Portugal, havia uma rapariga que não comia. Dizia o jornal: Jovem Gondomarense foi abençoada com aparição de Nossa Senhora há cinco anos, logo acamou e alimentando exclusivamente desde então de preces próprias e alheiras. Sou um ser antigo com um espírito vagante, pois apenas assim consigo manter-me em contacto com as sociedades dos humanos procurando delas as considerações vigentes sobre os valores humanos fundamentais, buscando, aprendendo, usufruindo. Este espírito humano que procuro captar, inquisitivo e insatisfeito, mas também preguiçoso e sub-reptício é, ao mesmo tempo, para mim, fonte abundante de aprendizagem e cornucópia de problemas. Foi munido de atitudes cientifica e turística, mas também de pé atras, que visitei a santinha. Ainda que falsa, a notícia da possibilidade de alguém que está há cinco anos sem comer, ainda que só beba, é de extraordinária importância para mim e para o

Infecção 1

Sempre fui um vampiro. Durante mais de 10 000 anos existi numa não vida, como um não ser. Era perfeito, era equilibrado, era belo na certeza das coisas eternas. Eras passaram por mim sem que desse conta ou sentisse sequer cansaço ou fastio. Renovaram-se, evoluíram, homens e demais bichos, moveram-se montanhas, secaram e encheram-se rios. Tudo perante mim surgia, por mim passava e por fim desaparecia. No ininterrupto ciclo da existência só eu permanecia. Sem ser um Deus, era mais do que um homem; tendo sido um homem, cumpri a aspiração destes, libertando-me das grilhetas do efémero. Já me tinha esquecido de como era sentir a vida; já se apagara o pulsar do sangue nas veias, da fome, do calor ou do frio, do chão duro sob os pés; já tinha abandonado o desejo de possuir; já tinha entregue a paixão de ser; já tinha perdido a memória dos filhos que vi nascer e criei. Era uno com o mundo, embora ele me temesse e amaldiçoasse. Não queria o mal dos homens, amava-os na condição de alimento, na c