Haverá lições a reter da vida? Pode aprender-se com o passado? Quem são os que olham para trás e temperam decisões com memórias? –9–


A dada altura, adiantada a caminhada, o nevoeiro deu mostras de querer levantar. Não se ia embora, apenas se tornava menos denso, o suficiente para o deixar ver as bermas da estrada com maior nitidez. Nelas, acocorados junto a cada postalete reflector, aquilo a que, apenas por seus olhos grandes e encovados reflectirem mais que os postaletes reflectores, tomaríamos como pessoas, pois por estarem tão mirrados e tão cheios de chagas, veríamos como cão sarnento, despejo ilegal, saco d roupa velha atirado de um carro; um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Eram só quatro, mas muitos mais lhe pareciam, pois grande era a sua miséria, e tão presente era sua a dor que quis acometer-se do seu pesar, tratar as suas chagas, lavar-lhes a cara e dar-lhes de comer, mas não conseguiu. Antes os viu todos imundos, todos desdentados, todos burros, todos maus. Como surgiram assim, de repente? Um desses vermes nojentos, uma mulher a cheirar mal, desdentada, com peladas no que foi cabelo preto de mulher, com a roupa pendurada pelos ombros, levanta-se e aproxima-se dele. Entra em pânico; sente um surto de adrenalina percorrer-lhe o corpo; o cheiro dá-lhe vómitos, a sua expressão desconfiada e interesseira fá-lo procurar no bolso a arma que não tem.

Que queres de mim? Eu, nada; queres-me tu a mim?

Queria; queria o seu corpo fétido, queria o seu cheiro nauseabundo, queria o seu olhar tenebroso. Queria olhar para ela para não ser como ela, queria ter alguém a quem fugir, a quem apontar todos os males e todos os defeitos que encontrava em si e nos como ele, queria que ela voltasse para o postalete e ficasse lá acocorada e que o nevoeiro adensasse novamente para poder voltar à maravilha do seu universo. Rebuscou mais fundo no bolso e sentiu o gosto de sangue na boca. Temeu que a mulher lhe pegasse uma doença; que a criança lhe passasse a estupidez; que o boçal de boné lhe passasse a sua agressividade; que o velho lhe passasse as suas maleitas; que o gatuno lhe passasse o gosto pelo alheio; que a rapariga lhe desse os filhos todos para as mãos; que o drogado lhe passasse o vício; que ficasse burro, que ficasse sujo, que ficasse sem casa e sem emprego, que perdesse a família e os amigos, que ficasse alienado. Não queria olhar para as mamas sujas da prostituta que caminhava ao seu lado, não queira imaginar que, para lá da berma, lhe bateria nas mamas e na cara, que a faria engasgar-se e a deixaria a contar trocos para a próxima dose, entre lágrimas, sangue e hematomas; antevia já o nojo que sentiria dela, só dela, por ter deixado que o tocasse; e ainda assim, entre o pavor de ser confrontado com a horda de vadios, gatunos, doentes, deleixados e preguiçosos, intumescia.

A criança puxava-lhe a ponta da camisola e pedia uma moeda para o São João. Ainda era cedo para isso, vai mas é comprar hamburgers ou gelados; ou então, estoura tudo o que pedincha em porcarias e brinquedos dos chineses. Sacudiu-a com um tabefe. Ainda temeu que o fedelho fosse buscar pedras e lhas atirasse; mas não, a criança recolheu à barra rota da saia da mulher e, mão na cara, recebeu um raspanete e outro tabefe. Suspirou de alívio.

O velho tossia, escarrava ruidosamente e fungava tão profundamente, que fazia gargarejos com o ranho para depois o cuspir aos arrancos para um trapo. Soltava, nos segundos que as inspirações ofegantes lhe consentiam, palavras que ele não compreendia, queixas soltas de vidas esquecidas e saúde perdida, fel que crescera da solidão da e loucura, brados embaraçosos saídos da fome e do abandono. Trazia na mão uma receita médica amarrotada e uma foto de quando era novo. Mostrou-lha, e ele estremeceu. Este velho tinha sido um homem, e antes disso uma criança; teve sonhos, lutou por eles; conseguiu alguns, perdeu outros; não reconhecia naquela foto o velho que a segurava, mas antes a si.

Atrás de si, um agarrado, gritava-lhe que se aproximasse da linha separadora.

Siga! Siga! À linha. Sempre.

Ignorou-o; fez ao contrário do que era gritado para fazer; abrandou a passada propositadamente, de forma repentina; olhava para trás com cara de mau. A isto, o agarrado, também ele nojento, sem dentes e andrajoso, respondia ajeitando o boné que escorregava no cabelo pastoso, ignorando ou desdenhando, por lhe parecerem vãos, os sinais viris que ele lhe enviava.

Siga! Siga à linha. Sempre.

Isto intimidava-o mais do que a puta e o jarreta juntos. Tinha no janado uma ameaça real à sua integridade. A mulher era pequena e fraca, incapaz de se opor ao seu ascendente físico; o velho era um espectro, preso à vida apenas pela teimosia dos telhudos que não sabem o que é melhor para eles; o janado, era um homem que, embora aparentasse debilidade física, era ainda novo, podendo ainda ter força dissimulada para se empenhar em luta corpo a corpo; ronha e maldade, ganhas nas ruas, disputando os melhores sítios de estacionamento, conquistando um barraco ou uma galeria de loja para a pernoita ou simplesmene fazendo frente à polícia, podiam muito bem compensar a sua mais do que aparente debilidade física; podia ter alguma seringa infectada no bolso das calças ou do casaco, pronta a usá-la, sem escrúpulo ou moral, contra mim, que nada lhe dei para que me odiasse desta maneira; podia ter uma faca, uma navalha de ponto e mola, no bolso das calças ou enfiada na meia, cheia de ferrugem e bactérias, que puxaria à falsa fé e ma cravaria nos rins.

Porém, nada disso aconteceu; tal como tinha rareado, o nevoeiro voltou a cerrar, escondendo as bermas e as criaturas acocoradas nos postaletes. Suspirou novamente de alívio; podia voltar ao universo.

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