Lições

11. Percorria a estrada com a cabeça de João Batista em cima da minha quando nos salta ao caminho um cão. Um diabo dum cão que nem era grande nem era pequeno e que ria à gargalhada. Não rosnou, ladrou ou ferrou, limitou-se a rir desabridamente enquanto apontava com a pata a cabeça do meu compagnon de route como quem escarnece e diz ser aquilo o mais ridículo que já viu na sua longa vida de seis ou sete anos. Por me deter, espantado com o duplo comportamento do animal, rir-se de nós, e por ser um cão que ri, ele aproveitou e sentou-se logo ao meu lado, desta feita como se sentam os cães e, enquanto amansava o riso, limpava as lágrimas com as patas e abanava negativamente o focinho. Era um cão rafeiro, de pelo baio muito curto, com as patas e a ponta da cauda brancas. Tinha as orelhas quebradas e caídas para a frente e olhos castanhos. O riso expunha lábios negros, assim como o dos leões. Mas sem os calafrios que felinos lábios causam a quem deles se avizinha, pelas razões óbvias, o contorno negro conferia-lhe apenas um ar estranho, como se tivesse comido uma barrigada de amoras muito maduras ou bebido água dos tanques do tintureiro. Por o ouvir rir, achamos que também falaria. Por isso perguntamos porque ria. Sem querer, fizé-mo-lo em simultâneo e com as mesmas palavras, o que fez disparar o raio do bicho em mais uma torrente de risota. Desta vez não aguentou e riu até rebolar na estrada. Quando falou fê-lo para dizer que lhe doía a barriga e o peito. Levantou-se sobre as quatro patas e, arquejante disse a custo que nunca havia visto nada mais estúpido que um homem com a cabeça de outro sobre a sua. Disse-lhe que era João Batista, um santo. Palavras que pronunciei, o cão desatou novamente a rir e quase se rebenta. Por entre gargalhadas diz que é mesmo estúpido, e que se é santo, porque não faz o milagre do corpinho reaparecido. Explico-lhe que siguia pela estrada e ele apareceu e logo nos pusemos a falar sobre a razão de ele, o santo, estar ali e não outro qualquer personagem, como Galois ou Gaudi. Pronto! Mas afinal quem são os caramelos, perguntou. Mais decepados? Disse-me que era mesmo estúpido e, perdido de riso, com o semblante carregado de dor e com falta de ar, que tinha a mania que era o maior da estrada. Já indignado, preparava-me para lhe atirar-lhe um pau à cabeça e seguir caminho, quando João Batista faz o milagre de me suster a mão e depois de esperar que o cão se acalmasse o suficiente para o ouvir, diz-lhe inocentemente: - Em troca de me passear na sua cabeça, ensiná-lo-ei a caminhar sobre os campos de trigo. Solta-se do cão uma gargalhada enorme, acompanhada de grandes quantidades de baba pela boca e ranho pelo nariz. Riu tanto que caiu para o lado, contorcendo-se de dores, o riso deu lugar ao desespero. O corpo, a mando de espasmos violentos, assumia poses assutadoras, nada naturais para um cão, que ainda que capaz de rir e falar, nada mais era que um cão. Deixá-mo-lo lá por sugestão do santo, que a tal não me atrevia. Não que me tivesse apiedado do coitado, mas por querer vê-lo morrer, morrer de riso. Avançados no caminho, deixamos de ouvir o sopro aflito e o esgadanhar das unhas no asfalto. Este não ri mais.

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