Pessoa

Vivesse, o que seria espantoso mas não impossível nem inédito, Fernando Pessoa celebraria o seu centésimo, vigésimo aniversário. Trinetos ou outros parentes mais lá para a ponta de um ramo familiar tivesse, que bem lhe quisessem, e teria uma festa de anos. Ao ser encomendado o bolo de aniversário, os bufos da ASAE certamente delatariam o facto e a zelosa entidade obrigaria, durante a canção de parabéns e até a última vela estar apagada, a presença de uma corporação de bombeiros e que o bolo estivesse debaixo de um sistema de exaustão de forma a não comprometer a qualidade do ar interior. Pessoa, com as forças que lhe restam, ri. Só perde o bom humor quando pede um jarro de tinto e recebe uma dupla negativa: a da peniqueira, perdão, auxiliar à terceira idade, do lar onde habita há mais de cinquenta anos e a do inspector da ASAE destacado para a celebração. À primeira, a peniqueira, Pessoa ladra entre dentes que tem cento e vinte anos e que se morrer com o tintol no goto será um regalo. Caso resolvido. A resposta à segunda nega é engolida e acatada por duas razões: primeira – Pessoa é do tempo em que um funcionário público, ainda que bosteiro, tinha poder de estado, e essas coisas dificilmente se esquecem. E a segunda – Caeiro vê ao fundo da mesa uma garrafa de porto com três rapazolas, na casa dos oitenta, no rótulo e nela encontra uma saída fácil para o seu problema.

Grafomaniaco, enche-se rapidamente da festa e só pensa em escrever no seu computador. Como sempre teve uma letra de merda e a idade não a veio melhorar, o seu editor começou, há mais de vinte anos, a equipá-lo com computadores cada vez mais rápidos e cada vez mais pequenos. Pensou que seria altura de lhe dizer que não queria mais portáteis. Queria uma daquelas novas torres, feitas de alumínio, com teclado e rato bluetooth, que pudesse ter numa mesinha de colo, e um écran de 30 polegadas para ver tudo do cadeirão onde passava boa parte do tempo. Abordado por um repórter sobre a forma como escrevia e como um(a) Pessoa da idade dele se dava com computadores, respondeu que agora gastava menos tinta, e que estranhou, de início, mas que agora tinha o computador entranhado e não pensava voltar à escrivaninha alta. «De resto», continuava, «quando não escrevo, passo horas a navegar a net. Posso rever todos os locais por onde passei, por muito distantes, no tempo ou no espaço, que se encontrem. Liberta este corpo maltratado do confinamento que a idade o sujeitou. E, antes que pergunte, digo-lhe que não foi difícil passar a usar o computador. Difícil seria se não pudesse escrever, intolerável até. Onde e como é irrelevante, contando que escreva».

Ouvi estas palavras do canto onde me escondia e pensei: E se este homem tivesse morrido novo?

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