A santa

Há uns anos, já não sei bem há quantos mas poucos, li num jornal que para os lados de Gondomar, Portugal, havia uma rapariga que não comia. Dizia o jornal: Jovem Gondomarense foi abençoada com aparição de Nossa Senhora há cinco anos, logo acamou e alimentando exclusivamente desde então de preces próprias e alheiras.

Sou um ser antigo com um espírito vagante, pois apenas assim consigo manter-me em contacto com as sociedades dos humanos procurando delas as considerações vigentes sobre os valores humanos fundamentais, buscando, aprendendo, usufruindo. Este espírito humano que procuro captar, inquisitivo e insatisfeito, mas também preguiçoso e sub-reptício é, ao mesmo tempo, para mim, fonte abundante de aprendizagem e cornucópia de problemas. Foi munido de atitudes cientifica e turística, mas também de pé atras, que visitei a santinha. Ainda que falsa, a notícia da possibilidade de alguém que está há cinco anos sem comer, ainda que só beba, é de extraordinária importância para mim e para os que como eu dependem, ainda que de uma forma sublime, de um único alimento de um único animal.

Como não havia visitas à noite e uma estranha impaciência, rara em mim, única que me lembre, me impedia esperar pela época do ano em que os cristãos recriam nas suas vidas, com maior ou menor empenho, mas, e salvo as excepções, de forma teatrada, as agruras dos últimos dias daquele a chamam 0 Salvador, como não me vi capaz de esperar por tal ocasião, onde seria fácil juntar-me ao rol de fieis que entram e saem, e balbuciar com eles ladainhas imperceptíveis, cumprindo o papel que deles é aguardado sem propriamente saberem porquê, os que executam e os que observam, como não pude esperar, repito, nas horas favoráveis ao meu ser, as das noites escuras e arcanas, entrei no quarto da santinha sob forma espectral.

De conluio com as sombras do quarto, quieto e silencioso como uma estátua cujo peito não ventila e coração não bate, pele não brilha e olhos não cintilam, observei a santa no seu sono. Os cabelos negros penteados de forma prática, estavam arrumados para o lado da almofada e para baixo, para lá do ombro esquerdo, perdidas as pontas entre lençóis. A luz indecisa da lamparina de azeite mortificava o rosto cinzelado da santinha. Não era um rosto branco, nem tinha aspecto de morto, ou doente que fosse. Mas também não era um rosto vivo. Parecia estar como eu, entre a vida e a não existência; para lá da vida e para cá da morte. Um abismo desenhava-se da base do queixo ao pescoço, este ligava ao peito em suave planura e perdia-se, com o cabelo a um lado, nos lençóis. Depois disso e para baixo, nada; a cama era lisa e aprumada como se tivesse sido feita de lavado; só no extremo oposto pés pequenos solevantavam a roupa. Imagino que o povo simples e devoto, perante tal ausência de formas, concluísse da absoluta magreza da Santinha atribuindo o facto de se manter viva à grande fé que a alimenta e à graça de Nossa Senhora que a mantém como relíquia viva, tributo ao poder dos escolhidos de Deus e lembrança pungente da necessidade do fiel assim se manter. Neste momento, a conjugação do rosto, frágil mas suave, com a aparente ausência de um corpo na cama, fascina-me e leva-me a alargar o espectro da minha análise ao resto do quarto. É um quarto como os outros, tirando a existência de duas portas em paredes opostas, um melhoramento feito à posteriori e que se entende por simples razões logísticas; os fieis entram por uma porta, benzem-se, rezam e benzem-se novamente, saindo depois pela outra, em direcção, imagino, a uma salinha onde se aceitam esmolas e se vendem recordações. Há também alguns quadros de santos, S. Brás protector dos animais, S.ta Apolónia protectora da boca e dentes e padroeira dos dentistas, S. Gonçalo protector dos marinheiros e pescadores e santo das doenças dos ossos, S. Libório protector da pedra, dos males de bexiga, e dos rins, se calhar padroeiro dos nefrologistas; maior, um retrato do sagrado coração de Jesus encima um aparador. Sobre a cabeceira da cama, na parede, está um grande crucifixo feito de sementes de eucalipto patinadas a castanho e envernizadas para maior durabilidade. Há uma cadeira aos pés da cama e na mesinha de cabeceira está uma foto da Santinha quando era apenas uma menina devota, ajoelhada, de olhinhos postos num altar imaginário, talvez pedindo perdão por pecados que não cometeu ou por brincadeiras que não sabia serem pecados; ao lado, apadrinha-a uma estatueta de Nossa Senhora, contemplativa e vigilante. Não havia espelhos, grandes ou pequenos; não havia roupa, nem roupeiro. Havia o aparador, modesto, duas gavetas, tampo em mármore branco, de Carrara, talvez o único luxo; terá sido uma prenda? Ao centro um crucifixo com uma lamparina de azeite aos pés, a tal luzinha trémula que dava conforto à Santa mas que a traía pois as sombras que cria por não ser suficientemente forte para encher o quarto de luz, acoitam-me; a mim, um vampiro sanguinário que escarnece Deus e apressa o caminho das almas, ou pelo menos assim acham que sou.

Senti passos, a santinha também; encostei-me ao canto mais escuro do quarto, aquele que até as aranhas recusam na hora de tecer a teia por saberem que nada vivo por lá passa, a santinha abriu os olhos e agarrou a barra do lençol; fechei os olhos que de alvos me denunciariam e passei a ver com a mente, a santinha esticou os braços acima da cabeça e contorceu-se num espreguiçar relaxante. Uma das portas abriu-se e uma mulher entrou. Sentiu o quarto frio (tenho destas coisas) e depois de pousar um tabuleiro com comida, voltou a sair. Voltou com um roupão que entregou à santinha. Ela afastou a roupa da cama revelando um colchão cavado ao jeito do seu corpo. Vestiu o roupão, puxou a cadeira para o aparador e dele afastou crucifixo e lamparina para o lado. A mãe entregou-lhe o tabuleiro e deu-lhe um beijo na testa.

Que fiz eu? Nada. Deixei-a comer, conversar com a mãe, usar o penico e regressar à cama. Ao sair, por entre as orações que murmurava desde que a mãe se despediu, disse baixo mas de forma a que a ouvisse: – Podes vir sempre que quiseres.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fuck’in eden

O pé direito