O homem da sala das raridades

Lembro-me de uma fugaz passagem pela corte do Rei Sol. E desse tempo embrenhado em futilidade e maquinação como nunca antes havia visto, recordo um episódio de descoberta e espanto.

A corte de Luís XIV era, entre muitas outras coisas, abrangente. Nela podíamos encontrar toda a sorte de vilania e bajulação; nobres ricos e poderosos e nobres tão desgraçados como o bretão que lhes segurava o balde da urina não fosse o título herdado e que, vai lá saber porquê, lhe clareava a pele, exacerbando as veias azuis, o sangue azul, e o meu desejo de o sugar. Aliás, só me alimentava da nobreza. Encontrava nas donzelas alvas deleites raros na minha condição: apertava-as contra o meu corpo frio, voltava-as e espremia-lhes os seios pequenos, ou grandes. Acariciava-lhes o ventre, o rego do peito, as omoplatas e, perto do êxtase, cravava-lhes os dentes. Gemiam ao sentir a mordida para se arrepiarem e desesperam tarde de mais. Na corte do Rei havia também uma cornucópia de artistas, músicos, bailarinos, o pintor da moda, excêntricos comedores de fogo e engolidores de espadas, mulheres que se desarticulavam e se enfiavam em vasos e caixas minúsculas. Havia também médicos, físicos, alquimistas, cartomantes, poetas e toda a espécie de servos (todos o eram para o Rei) que mantinham a corte operante. Era os camareiros que dormiam aos pés das camas de quem cama tinha; era os cozinheiros que dormiam na cozinha; era os vallets que serviam onde fosse preciso e dormiam onde calhava; era os cocheiros e estrebeiros que dormiam confortáveis em camas de feno entre o calor dos animais.

Para além dos objectos humanos, a corte de Luís XIV contava ainda com uma imensa colecção de obras de arte, despojos de guerra, ofertas diplomáticas, bens confiscados a nobres caídos em desgraça, cobranças coercivas em género (geralmente de valor muito superior à dívida original) e tudo quanto que valesse a pena guardar. Entre esses objectos havia umas quantas maravilhas que, pela sua excentricidade de forma ou de propósito ou incerteza quanto ao seu valor, estavam guardadas numa sala à parte. Num salão perdido em Versalhes, com os cortinados corridos e o ar bafiento pela mijadela ocasional de um nobre do norte num dos cortinados, repousavam tesouros do irreal, do místico, do fabuloso, do folclórico, do raro, do longínquo. Como as vértebras fossilizadas de um saurópode gigantesco vindas China; também da China, um guerreiro em terracota reproduzido no mais ínfimo pormenor de fisionomia e indumentária; da Sardenha, um saco mágico que supostamente nunca se esvaziaria de nabos e que nunca ninguém se deu ao trabalho de voltar de boca para baixo; da India a cama de pregos de um faquir que não resistir à viagem até Paris; também de lá, uma estátua de um ser com corpo de mulher, seis braços e cabeça de elefante; de África, predadores empalhados e curiosos tambores de pele de animais, ornamentados de cores extravagantes; da Inglaterra os ossos disformes de um pobre coitado cujo contributo para o mundo foi nascer com elefantíase e disso perecer sem que se soubesse sequer o seu nome; do Douro português, garrafas de um vinho impossível de se produzir em qualquer outra parte do mundo; do Japão, biombos em bambu com retratos primorosos de encontros de civilizações; da Pérsia, um vaso com um líquido repelente e pegajoso que tinha a capacidade de arder e fazer arder quase tudo a que se colasse; da Terra Santa, um relicário em ouro, recamado de jóias, contendo uma lasca de madeira a que chamavam Santo Lenho; das selvas ameríndias, pássaros tão pequenos que diria tratar-se de insectos emplumados; do novo mundo, chapéus de penas, cocares, como alguém disse chamar-se, usados por selvagens muito guerreadores que, em batalha, não satisfeitos em retirar a vida ao adversário, ainda lhe arrancavam o cabelo com couro e tudo, exibindo-os como troféus em cirandas grotescas perante os seus pares e pendurando-os nas pontas das lanças e deixando-os à mercê do vento à porta das suas aldeias. E havia também um homem.

O facto de ser homem não lhe conferia naquela sala estatuto especial. Estava lá pousado, ora sentado nas vértebras do saurópode, ora deitado numa cama que improvisou às escondidas numa liteira que se dizia ter pertencido a Júlio César. Não raro era esquecido por completo e só muito moído pela fome se atrevia a jogar a cabeça para fora de uma das portas de serviço e mendigar alguma comida e um balde vazio. Foi numa dessas alturas que o vi. Andava à caça de sangue azul e ao vê-lo velho, tisnado desbotado e porco, nem me dei ao trabalho de pousar. Quis saber mais a seu respeito, mas a minha impaciência impediu a donzela de se alongar na história. Deitado na cama, contemplando o corpo inerte da fêmea, arrependi-me da minha voragem e prometi a mim mesmo duas coisas: mais contenção e respeito por quem está a meio de uma história e saber mais sobre o homem do salão.

Acabou por ser Luís, a quem eu mostrava os dentes entre sorrisos, e que ele, de tão estúpido e arrogante, não se apercebia que dificilmente estaria mais perto da morte sem que esta o levasse. Acabou por ser Luís, dizia, que me falou do homem convidando-me, grande honra, a visitar o seu salão do estranho. Mostrou-me tudo o que relatei e, para além dessas peças, mostrou-me um tapete que, segundo sua mãe, entrou voando pela janela do quarto onde se tinha dado o seu real nascimento, uma poção extraída do corno de um animal couraçado que revigorava o mais frouxo dos homens e uma peça de seda trazida do Oriente pelo próprio Marco Pólo. Havia ainda um baú com incenso donde se retirou o que ardeu no seu baptizado e que foi, fonte segura, oferecido primeiramente por um Rei antigo àquele que poucos anos mais tarde viria a morrer numa cruz de madeira. Cruz essa que, fonte segura, restava apenas a lasca guardada mais além. De saída, e porque se abeirou e cumprimentou com reverente vénia, notou Luís a presença do homem. Disse-lhe então que se levantasse e que mostrasse a razão porque estava ali. O homem afastou as roupas imundas do peito exibindo uma placa de ferro. Desatou as tiras de couro que a cingia ao corpo e levantou-a, expondo o seu coração palpitante. Era moço de estrebaria quando, num dia de azar, foi escouceado no peito por um cavalo. Ninguém explica como sobreviveu aos ferimentos, os ossos esmagados, a necrose, a remoção do tecido morto sem anestesia de forma séptica. Ninguém explica, senão como milagre do tal que tinha deixado ao Rei Sol o baú de incenso e a lasca da cruz, o facto daquele homem estar vivo com o coração exposto. Por isso estava ali, como a maior das raridades daquela sala, e eu, alheio à história dramática do homem, alheio ao próprio homem, estava fascinado. Comecei a contar as batidas e coloquei-lhe a mão sobre carótida. Estranhou a mão fria, e eu percebia que era o coração que lhe empurrava o sangue pelo corpo que era o coração o motor da vida daquele homem, de todos os homens e da minha também. Levei então a outra mão na direcção do seu coração e toquei-lhe ao de leve. Esperava uma reacção de dor ou, pelo menos, de desconforto. Como não reagiu, empurrei, levemente, o coração com os dedos. O homem, submisso, disse-me que, se quisesse, podia tocar-lhe o coração. – Mas estou com a minha mão no seu coração. Não sente? E agora, que lho aperto; que sente? – Nada, Senhoria. Não sinto nada.

Comentários

Ana Ribeiro disse…
Gostei muito!

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