O homem de metal

Havia um homem que corria a cidade de Bíblia na mão. Era velho, sujo, desgrenhado, irascível com os transeuntes, falava alto e de forma inconveniente, cheirava mal quando, no inverno, a chuva lhe ensopava o corpo e cheirava mal quando, no verão, o sol lhe sobreaquecia a ossatura. Ninguém o queria por perto, as crianças e as mulheres, as menos afoitas, fugiam dele; as mais rijas e os homens mais machos ofereciam-lhe porrada; os mais maricôncios mudavam de passeio ou alargavam o passo para o despistar; eu, adorava-o. Por causa dele e porque tinha o péssimo hábito de se embebedar pela maré do chá e apagar a um canto durante a noite toda, obrigou-me a algo, que não me matando, não me agrada nada e que é andar por aí durante o dia. Seguia-o discretamente para que não estranhasse ele, nem estranhassem outros que tamanho vagabundo fosse alvo de cerrada perseguição. Por várias vezes tentei falar com ele na rua, sob esta ou aquela forma, para que não percebesse, mas só levava com acenos de Bíblia na cara e quantidades enormes de perdigotos e insultos. A sua mensagem, existisse alguma, não era clara. Certo dia, quase a desistir, arrisquei entrar com ele no 78, sentido Baixa, Castelo do Queijo e notei que a sua atitude mudara radicalmente. Sentava-se na cozinha, sobre o calor do motor do velho Leyland. Compunha o casaco roto, alisava a barba e o cabelo e abria a Bíblia. A dignidade na pose que apenas eu conseguia ver era, dentro do autocarro, exponenciada pela postura direita e serena do homem. Tal como um padre católico indiferente à existência ou inexistência de fieis durante a celebração da Eucaristia, ou do seu nível de atenção, o homem abria a Bíblia e lia do Velho Testamento: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar. Por que olhas para os que procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele? | E por que farias os homens como os peixes do mar, como os répteis, que não têm quem os governe?” Habacuque I, 13-14. Perguntei-lhe por razão lia aquela passagem, aquela, mais uma das muitas em que os crentes desesperam e vacilam, se insurgem e protestam, gritam injustiça e exigem explicações? Que outra resposta teria ele, se tinha, diferente da resignação, da entrega ao intangível desígnio? Demorou na resposta; creio que se assustou, não com a pergunta, mas somente por haver alguém que lha fez. Foi talvez nesse momento que me apercebi da sua genuinidade. Era um pregador verdadeiro, um homem que tinha uma missão na sua vida. Indiferente a considerações éticas sobre os valores que propalava; absorto do retorno da sua mensagem; enlevado pelo som da sua voz e pela força da sua palavra; inerte perante os ataques, os trotes verbais e físicos a que se submetia. Não o incomodava a fome, a falta de higiene, a doença que se adivinhava na pele e nos olhos, nas mãos e no hálito; não o incomodava o corpo castigado. Disse então, para mim e para todos, que o Homem não é feito de carne e osso, apenas aparenta ser. O Homem é feito de metal e o seu interior é de fogo. Levantou-se, tocou a campainha e saiu.

Procurei-o sem parar para o encontrar três dias depois. Num prédio que nunca ganhou mais do ossos, estava o corpo biótico do homem de metal. Ratos haviam levado as roupas e as botas, deixando apenas trapo envolvendo farrapo. Estou certo que não se importou. Estava deitado sobre um monte pequeno de entulho, uma pietá destes dias dos humanos.

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