Os cães da minha vida

Há muitos anos, antes mesmo de me tornar vampiro, num tempo em que ainda vivia mas ainda não sabia o que era viver, ou estava então aprendendo a viver, passaram três cães pela minha existência. Os três animais foram contemporâneos, dois partilhavam o espaço em frente à minha casa e outro as traseiras.

Ringo, o Respeitado (1/3)
Ringo era um daqueles cães que faz lembrar qualquer coisa mas que não tem nada a haver. Parecia um doberman. Era preto como os doberman, tinha o focinho de cor creme como os doberman e as patas de igual cor como os doberman. Mas não tinha nada a haver com um doberman. Era apenas um rafeiro bem parecido, se calhar com alguma linhagem, talvez o fruto em primeira ou segunda geração do desvelo de um cão nobre com o devaneio de uma cadela plebeia; ou o inverso, no que toca a género. Nunca soube o que era ou se era sequer possível. Se teve avoengo fidalgo, dele herdou gosto para a modorra e garbo sem sentido. Só perdia a compostura para com o carteiro. Corria para ele e ladrava, atalhava-lhe o caminho e insultava-o em língua de cão pelo tempo que demorasse a ronda do profissional. Fora disso, que feitas as devidas análises, seria desporto, portava-se de forma absolutamente indolente. Ora dormia, ora apanhava sol; ora cheirava frincha de cadela, ora se punha nelas. Um lorde! As mães tinham-no em elevada estima, por ser amistoso e manter debaixo de olho os estranhos que cruzavam a zona, era, digamos assim, o cão do regime. Tendo aparentemente por único serviço dar alerta diário da chegada do carteiro que, consoante o dia do mês, traria reforma, ou baixa, ou remessa dalgum emigrado, ou a revista do Circulo de Leitores ou demais correspondência, tão monótona como a vida de quem a recebia. Em troca de magros préstimos, davam-lhe de comer os melhores restos; davam-lhe banho, à mangueirada, com sabão azul e branco ou, ó fartura, champô para a pulguisse e catarragem. Coça daqui, cata dali, não lhes escapava nada. Até lavavam os berlindes ao bicho, prerrogativa exclusiva daquele macho, que o de casa, lava-se-os ele. Já os putos não iam muito à bola com o Ringo. Desconfiavam do conluio com as mães. E ele, como não gostava de se mexer, rosnava aos miúdos que o puxavam para as brincadeiras. E estes, amedrontados, deixavam-no quedo a um canto como gostava. Envelheceu dignamente para um cão vadio. Teve funeral e ouve quem chorasse por ele e desse o seu nome a um cachorro, seu filho, mas sem história.


Fogo, o Aventureiro (2/3)
O Fogo era, dos três cães, o único que tinha um verdadeiro dono, o Toninho, e ao mesmo tempo, era sem dúvida o mais livre de todos. Não que os outros vivessem presos ou levassem porrada, tivessem humilhantes obrigações como guardar um pedaço de chão ou ter de bajular alguém em troco de morfes. Nada disso. Regra geral, aos cães da rua, porque dos outros nem vale a pena falar, era dada a mesma liberdade que se dava aos miúdos daquele bairro. – Quando tiveres fome, aparece. O Fogo era especialmente livre porque o Toninho nada esperava do seu cão, nem sequer que respondesse aos chamamentos. Dizíamos que o cão era do Toninho e não o cão do Toninho, para além das razões óbvias, porque para tão livre e jovial criatura, as crianças entendiam haver a necessidade de uma figura tutelar para aquela personagem; talvez o mais sublime mimetismo este que colocava putos e bicho em igual plano. Daí que o relacionamento do Fogo com a canalha fosse de um entre iguais. Mas era um igual sacana. Se jogávamos ao aro, corria ao lado deste e nele se ensarilhava; se atirávamos o pião, abocanhava-os ainda em rodopio e fugia com eles; se brincássemos ao paulito, para flagelo dos poucos carros estacionados e vidraças das janelas, o raio do bicho roubava-nos o paulito do rego ou, caso o lançasse-mos, corria por ele e levava-o para longe. Mas também era bicho de se deixar montar pelos mais pequenos; de nos olhar como se nos fosse trinchar para logo pinchar à nossa volta em delírio brincalhão; de agarrar a ponta de uma corda e puxar-nos nos carros de rolamentos. Acho que toda aquela energia se devia não ao Fogo ser um cão particularmente forte ou bravo, o nome tinha a haver com o seu pelo claro e levantado, a lembrar labaredas, mas antes a um processo de selecção natural; se uns se dedicavam a rasgar calças e a atemorizar vizinhos, outros, ó felizes, cansavam-se em cópulas infindas. Ao Fogo sobravam os putos, fossem meninos ou meninas. E foi com os meninos e meninas que o Fogo encontrou a sua razão de viver. Só que o facto de ser um cão com pouca sorte nos amores, pois que sendo cão, logo mais sensato neste particular, nunca é só um ou mesmo um de cada vez, levava a erupções comportamentais inusitadas mas de todo inesperadas.

Estava o Zé Manel pronto para lançar paulito [Uma pausa para quem não conhece o jogo: o jogo do paulito consiste em lançar, com o auxílio de um pau maior, aí uns trinta e cinco centímetros, um pau menor, uns dez, por meio de o levantar de um rego cavado no chão e, uma vez no ar, acertar-lhe pancada seca que o leve o mais longe dali. Compete ao adversário correr para o pau pequeno e atira-lo de volta ao rego onde espera o lançador com o pau maior aprumado, tal e qual. A pontuação soma-se medindo em paus grandes ou pequenos, a distância entre o rego e o pau pequeno devolvido pelo adversário. Se este com a devolução acertar no pau maior, ganha a vez e o lançador não soma pontos]. Então, tinha ficado o Zé Manel a ponto de lançar o paulito. Sabe agora o leitor que para o fazer o Zé teria que se agachar significativamente, expondo parcialmente o traseiro alvo e rechonchudo. Fosse por o ver assim tão a jeito, fosse por o Zé Manel cheirar à cadelinha de açafate da mãe, o Fogo não se conteve e tratou de o montar. Agarrou o moço pela cinta para logo desensacar a grila. Vai daí começam os movimentos oscilatórios e começa o Zé Manel a esquivar-se e a dar-lhe atrapalhadamente com o pau enquanto gritava: – Ó Toninho olha o teu cão! Ó Toninho olha o teu cão!

Fiel, o Bandido (3/3)
O Fiel era um cão grande, aí uns setenta centímetros no garrote. Tinha o pêlo claro, quase branco, pernas compridas e uma figura esguia. Focinho grande, de lábios vermelhos numa venta que bufava terror nos putos que tinham de cruzar o seu domínio a caminho da mercearia. Era absolutamente leal à sua dona e selvagem para os demais. Era verdadeiramente selvagem e selvático. Esfarrapador de calças, estripador de gatos, fazia do mais pacato cidadão um corredor, do velhote mais artrítico um velocista. Tirando a dona, só o Jerónimo, a quem as mães chamavam gatuno e insurrecto e que viria a dar razão aos augúrios, ou às sentenças, fazia farinha do Fiel. Mantinham uma relação de camaradagem acéfala, quase fraternal, que levava o Fiel a atacar furiosamente a um breve comando do Jerónimo, e Jerónimo, por seu lado, a interpor a sua tesa figura entre o cão e quem lhe erguesse um pau, jogasse uma pedra ou acenasse com patas de galinha temperadas com 605 Forte. Só não lhe pode valer no dia em que a dos ‘10 e mais um’ que, cega pela visão do gato estripado, o seu rico gatinho branco, tão vermelho agora, pendendo da boca do Fiel, chamou a rede, o canil, para o caçarem e, sem julgamento, o condenarem. Vieram os homens numa carrinha da câmara. A notícia rapidamente se espalhou e, das janelas e varandas, mães e miúdos, acomodavam-se para assistirem à caçada. O Jerónimo não estava, tinha ido gamar qualquer coisa, não sei, de forma que o Fiel estava por sua conta. Um dos funcionários pegou numa rede semelhante a um camaroeiro ou a uma rede de apanhar borboletas, salvaguardando as diferenças entre os bichos; borboletas, camarões e o cão. Foi-se a ele calmamente, demonstrando prática e confiança. Com a rede em baixo, aproximava-se passo a passo, olhos nos olhos. O Fiel, estupefacto com a audácia do humano, hesitou; e quando reagiu já tinha a rede enfiada até à base do pescoço. O homem prendeu-o firmemente, pressionava a rede para baixo e puxava o longo cabo de madeira para si, obrigando o Fiel a baixar a cabeça e a anichar as pernas. O povo suspirava perante a brevidade do espectáculo, esperavam mais daquele fora da lei do que três ou quatro estremeções e uma despedida sem glória. Mas eis que Fiel, apesar da falta de confiança geral, firme de si, arremeteu contra o funcionário, mordendo-o pela rede. O homem assustado com a inusitada perfídia, caiu largando a rede. A multidão nas bancadas rejubilava, os putos gritavam pelo Fiel, as mães sorriam e comentavam a má sorte do homem da câmara umas com as outras. Segundo acto! O perigo não tinha passado para o cão. Os homens deram-se conta do erro cometido ao subestimar o valente vilão. O que foi mordido coçava o antebraço, safou-o a ganga grossa, de 14 onças, do casaco. O outro foi à carrinha e tirou a rede, como as de pesca; era a guerra. Fizeram-se a ele e, com a ajuda de um Efialtes, encurralam-no num canto. Os homens retesavam a rede, faziam-na tremular à frente do cão que rosnava e fitava os dois. Das beiças arreganhadas pingava raiva, dos olhos raiados emanava ódio. Ouvia-se o cão bufar; rosnar; ladrar. As janelas e as varandas estavam em absoluto silêncio. Expectantes, mães e putos, fundiam-se com o cimento e com o tijolo. Era agora que caçavam o Fiel; era agora que o cão que todos amavam odiar seria deposto em favor de uma sucessão incerta; era agora. A rede aproxima-se, Fiel vacila; os homens mostram os dentes e há um brilho malévolo nos seus olhos, Fiel levanta o focinho em súplica. Dá-se o assalto final, os homens lançam-se contra Fiel atirando-lhe a rede. Jerónimo grita: Fiel! O cão salta, vence os homens, sobrevoa a rede, corre para a liberdade. Jerónimo corre para os homens, dá-lhes pancada. Dois homens feitos levam-nas boas do Jerónimo. Fiel recobra e ataca. Morde este e aquele, traça a rede, fá-la em fanicos. Jerónimo corre com os funcionários à chapada dali para fora. O povo exulta, bate palmas, dá vivas ao bandido e ao seu salvador, o delinquente.

Daí para a frente, a vida de Fiel foi sempre a descer. De volta ao seu mau feitio, acabou os dias de trela curta e longa raiva. Um dia soltou-se e mordeu uma senhora. Desta vez vieram preparados, o Jerónimo estava preso, e levaram-no.

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