SOL

E o Sol fala de?…

Muito poucos são aqueles que vejo nascer. Quase todos nascem debaixo de telha. Quando não estou a ver, mas está ela, aquela que namoro há milénios num bailado incessante, também quase todos nascem debaixo de telha. Só os mais desprevenidos, os mais apressados ou os mais expostos dos expostos, eu vejo nascer. Dado que poucos são os que vejo nascer, tu, um bem nascido, não foste excepção: não te vi nascer. Apenas algumas semanas depois de nasceres e te assumires como indivíduo te vi pela primeira vez, e tu me viste a mim no que seria mais uma primeira vez de muitas primeiras vezes. Logo gostei de ti e imaginei, ao iluminar-te a face que, um dia, dedicarias a tua vida a fazer com que também eu nascesse, renascendo sobre uma nova luz. Uma luz que abriria portas, que forjaria lutas, que anteveria conquistas. Uma luz que no teu crepúsculo se recusava a esmorecer, mesmo perante o que parecia o recuar em toda a linha da tua vontade ao direito de todos dizerem: “–Ele nasceu para mim”. Já tu não gostaste nada de me ver. Pois que a minha natureza é ambivalente, sou pai e sou mãe num só, dou e tiro com a mesma mão que não ostento e ainda assim esmaga, sou opressivo e impiedoso e sou cornucópia eterna e dínamo universal. Da primeira vez que te vi, impunha a minha presença a ti, a tudo e a todos. Não gostaste nada da forma como te tratei, como tratava tudo e todos e nada pudeste fazer então, senão franzir o rosto e chorar e, se calhar, confesso que esperei isso de ti, logo ali resolveste indignares-te contra a opressão e contra a impiedade. Em especial contra a opressão e contra a impiedade que é entregue pela mesma mão que afaga, que conduz e que forma. Tão pequeno eras que te esqueci. E perdi-te entre os milhões que contigo partilhavam o mundo.

Dei conta de ti quando deixei de te ver. Alguém abre um jornal a medo, nas traseiras de um quintal, que os olhos estão em todo o lado, e lá leio que estás preso. Procuro-te e vejo apenas fragmentos do teu rosto, branco e emaciado, atrás de grades escuras. Bem tento inundar-te de luz, mas é forte a barreira ao teu redor, e sou incapaz. Ciente disso, constatando que onde estás até eu fraquejo, vens tu ao meu encontro. Por vezes, quando te sentes mais capaz ou mais desesperado, um braço teu assome por entre as grades qual mastro hasteando uma bandeira invisível. É lá posto como que para aquecer. Lembra-te como é a luz que dá forma ao teu corpo. Recorda-te dos contornos definidos, dos dedos esticados e do punho cerrado. Recolhes o braço e levas, se bem que por breves instantes, o calor com que te recarreguei. Servir-te-á esse calor para desenhares o povo na serenidade agreste das suas actividades quotidianas, sejam eles donos de si e do que fazem ou sejam eles dominados e mandados por mãos que não se vêem, mas de cujo aperto é impossível fugir, em jogos de luz e sombra, criando instantâneos de um tempo gravado no âmago do que és; para escreveres aventuras de homens e mulheres com um desejo maior, numa sociedade que não é a de ninguém mas onde se reconhece o vizinho, o colega, o patrão, o que diz uma coisa e é outra, o que diz uma coisa e faz outra, os leitores espelhados nas páginas de um livro; para planeares a acção, para organizares a luta, para inflamares de confiança as almas e couraçares os peitos dos que cá fora mantêm a tua chama acesa; para trazeres o belo para a língua materna. Finalmente sirvo para algo.

As notícias escritas no jornal aberto a medo nas traseiras de um quintal não são boas: os anos passam e continuas preso. Não falas com ninguém, és humilhado e agredido. Sofre o corpo, a valer, mas o teu espírito permanece inquebrantável. Alimenta-te a suprema afronta do dia em que nos conhecemos? Terei sido eu o culpado de seres assim? Duro, obstinado, irredutível. Por fim chega. Vou tirar-te daí. Olha bem para mim. Não como quando eras indefeso e te encandeaste. Olha-me nos olhos. O teu trabalho aí dentro está feito. O teu olhar mudou; a tua boca mudou. És outro mas continuas o mesmo. Sai. Sai depressa. Há do outro lado das grades quem te possa admirar. Fala com ele nos instantes em que lhe passas a camisa surrada; passa-lhe bilhetes escondidos debaixo da tigela da sopa; revela-lhe a minha natureza e mostra-lhe a tua promessa. Quem sabe, também ele se incomoda com a minha opressão e prepotência. Veste uma farda, mas pensa já como tu. Pertence a todos e todos são seus filhos, diz ele enquanto enrola o jornal. Um dia assume e toma parte de uma fábrica maior. Olha para ti e vê-me a mim. Aceita que o seu grande risco seja a tua grande vitória, pelo menos a grande vitória daquela noite em que escapaste, porque mais e maiores estarão para acontecer. Estás cá fora mas não te vi sair. Andaste escondido, afastado de mim, por dias e noites fugindo. Apenas te voltei a ver quando, em apoteose, erguias os braços bem alto. Anos depois, li em tantos jornais que foste derrotado. Porque não fizeste o que de ti esperavam, os que preferiam que nunca te tivesse eu visto, e assumiste a dita derrota perante todos? Conheço-te desde que nasceste, ou quase. Era por certo a promessa que fizeste, quando nos vimos pela primeira, vez que te guiava. Não tinha que ser naquele dia, naquele tempo ou mesmo na tua vida. Haverias de me dar, pedaço por pedaço, por igual, a todos os seres humanos. Estarei cá para ver.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Coração

Fuck’in eden