Ninguém reparou

Ninguém reparou que precisamente no instante em que ela nascia, o planeta Júpiter, sem razão aparente e sem que ninguém, astrólogo ou astrónomo o tivesse antecipado, colapsou sobre o seu imenso peso e se transformou numa pequenina estrela azul, tornando, mais os seus sessenta e três satélites, o nosso sistema solar num sistema binário, menos extraordinário do que até então tinha sido e alterando de forma radical a paisagem celestial que contemplamos, para indiferença de poetas e pescadores e desprezo de aves migradoras e amantes do alheio e olvido de mitólogos.

Ninguém deu conta que quando ela tomou a sua primeira vacina, os eucaliptos da Austrália ficaram vermelhos por duas semanas originando, outras duas semanas depois, que todos os coalas que ociosamente trepavam essas árvores e comiam suas folhas, adquirissem um tom rosa até ao final daquele ano, confundindo-se e multiplicando-se com os flamingos das árvores e, em última instância, dando origem a uma nova espécie animal, fofa mas sem dentes e incapaz de voar, que foi caçada até à extinção por se achar que não iria durar.

Ninguém estranhou que as suas primeiras palavras fossem para nos dizer que de nada nos serve perguntar a Deus o que quer ele de nós, de onde viemos e para onde vamos quer enquanto indivíduos quer enquanto espécie, pois que Ele não existe, de modo que as palavras daquele judeu que ficou conhecido é o caminho mais perfeito para o mais civilizado e nada ofensivo ateísmo pois, ao aniquilarem-se na cruz, Deus (inexistente naquele homem para além dele próprio e dos que nele criam e creem) e o próprio homem, entregaram a humanidade a si própria, libertam-na de qualquer entidade exterior, da necessidade de um sentido último e da razão para a procura de respostas para sua a origem e para o seu destino.

Ninguém prestou atenção ao facto de quando ela, aos cinco anos, aprendeu a ler, pequeninas línguas de fogo se tivessem acendido sobre as cabeças dos seus filhos que ainda estavam por nascer e assim se mantivessem acesas até que eles mesmos aprendessem a ler, apagando-se apenas, quase todas elas, quando esses filhos fizeram o uso esperado do que aprenderam.

Ninguém ligou ao facto de, quando ela se fez mulher, todas as farmácias e centros de saúde e hospitais terem fechado nesse dia, e terem morrido dez mil homens por cada menino que nascia, e quinhentas mulheres por cada menina que nascia, e terem todos os meninos as mãos meigas, e todas as meninas os olhos bem abertos, e saberem todos, meninos e meninas, falar à nascença coisas de fraternidade e carinho e de compreensão e de tolerância.

Ninguém se espantou que quando ela se casou, um rato cósmico, saído de uma cratera de Marte, tivesse eclipsado sangrentamente à dentada um terço da nossa querida lua, e os mares se terem arrebentado todos ao meio e tivessem deixado peixes e moluscos e baleias e navios presos em desertos lodosos que seriam os seus cemitérios profundos assim que ela se deitasse com o seu marido.

Todos notaram que, quando ela levou o primeiro murro, uma atriz de cinema fez um anúncio a cremes anti idade e uma pessoa conhecida sem trabalho se fez paladim dos direitos dos animais. Todos fingiram reparar que, no dia em que ela morreu, nua e desfigurada sobre a cama, um homem atropelou outro que seguia bêbado na berma, um patrão não pagou salários a alguns funcionários, um jogador falhou um golo de difícil execução, um político mentiu sobre não aumentar impostos, um rapaz abandonou a escola para emigrar, um padre disse missa na presença de idosos, um estado aumentou a sua dívida pública e, ainda assim, apesar de ninguém reparar, entre mãos frias, pernas sangrentas e gemidos aflitos, uma menina nasceu.

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