Cacofonia

Uma cacofonia enche-me os ouvidos como água de uma piscina onde um sol abrasador me força a mergulhar e dela sou impedido de sair por um vento cortante. São vozes de mulheres e homens, de coisas que passam e cães que, de ladradores, ladram, estrepitosas umas, basais outras, ora em confronto ora em conluio; são vozes de si sobre si, raramente vozes de outros. Diz o tato, em voz de tato, que ‘…ela dite atim…’, e lamentavelmente levo a mão à boca para não a soltar, e tapo o nariz para não o fungar. Lamento o tato e o seu interlocutor feio, atrás de uns óculos lamentavelmente feios, e lamento não ser o tato, timples na tua timpliticade tátil de palato impedido e livre de ser, sem compromisso filosófico, nem censura intelectual. Desprezo-me por saber que os €49,50 da mistela em boião, ou pó, ou pasta solúvel não me permitirão emagrecer; censuro-me por perceber que a vizinha é má porque eu sou mau para ela; castigo-me emocionalmente por ter por certo que se aquele enganou os irmãos nas partilhas, terá sido porque os restantes chegaram tarde; detesto-me por sentir que se ela se acha importante, é porque eu gostaria de me achar importante como ela. As falas, as conversas, as trocas de palavras, as interrupções mútuas, assaltam os sentidos e impedem que me fixe numa única linha de diálogo. Melhor assim. Entre um ‘quero um gelado de laranja’ e um ‘e eu disse assim’, a prisão que o atropelo contínuo das falas gera á minha volta, como teia sonora que me apanha o pensamento, liberta-me do tormento que é estar comigo. Perante a cacofonia, sinto-me como o criado de mesa no dia em que os seus dois colegas foram despedidos por colocarem os genitais no copo da água do cliente autarca e experimento, ao mesmo tempo, a sensação de desamparo perante a sala cheia e secreta admiração pela desusada ação política. A primeira impede-me de pensar que estou em mim, sempre, a segunda foca-me a mão sob a bandeja, o contar do troco, a memória dos pedidos e o olhar atento aos jeitos, trejeitos, relances e interjeições dos clientes, ora frustrados pela demora inusitada, ora admirados pela olimpíada de café que se desenrola perante a sua indiferença. Mergulho de olhos no tablet, no livro (que são a mesma coisa), na morte que é a vida antecipada e faço meada da teia que me rodeia. Puxo, fio a fio, dobando conversas, enrolando atitudes e comportamentos. Faço-os em novelos de padrões, de predisposições e de ações. O sociólogo perde-se neste cotidiano de banalidades preciosas; banalidades que acometem os sentidos. Incomodam, elucidam, chocam e confirmam; tornam-se absolutas, impressivas e opressivas. Invadem, às gargalhadas, o limite do eu. Mas é sempre possível a abstração da cacofonia. Basta para tal levantar a cabeça do tablet, do livro, da morte, e olhar o barco que passa, olhar o carro que passa, olhar a vida que passa, inerte a mim, á minha vida, a todo o universo que sou e que existe apenas no que sobra do universo de todos. Aí encontro a paz do barco que passa, do carro que passa, da vida que passa até que o tablet, o livro ou a morte, ou a cacofonia, retemperava a paciência ou a gargalhada, me chame de volta, porque, sem saber quem sou, sente a minha falta ou somente eu que sinto a falta de me sentir em falta. Passou o barco e levou consigo a paz de pensar que não se é nada senão um interregno no tempo do universo; passou o carro e levou consigo a paz de sonhos de reconhecimento que, a vir, virão tarde de mais; passou então toda a vida que não se viveu naquele momento, distraído na outra vida que corria parada num propósito banal para, de absoluto e impenetrável, se travestir de propósito maior que nunca chegaria […] ou chegará.
E talvez assim seja melhor. De que serve viver sem sentir a dor de existir; a dor existencial de nada fazer sentido; a incapacidade de não deixar de ser capaz; o assomo constante da glória que apenas surge ao espelho; o mosto denso que penetra os sentidos e tinge o corpo mas que não passa de transeunte, efémero, sem lembrança do que não é mais do que o pitoresco e o caricatural? De que lhes serviu séculos de paz, nunca terem sido invadidos, e terem para apresentar ao mundo, queijo bolorento e relógios de cuco? E outros houve a quem, por entre guerras, fome, dor, déspotas, de entre eles assomou quem lhes haveria de dar mundos, glória, imortalidade. Não tivesse um sido açoitado aqui e ali, em tavernas reles, por ser reles; um náufrago de si e de verdade, por ter de fugir da pátria; perdido um olho numa rixa inútil e teria escrito a dor e a glória de um povo que, nunca tendo existido, é ainda assim memória e palco iluminado? E não tivesse outro sofrido à mão de si mesmo e de quantos com ele trazia; e as dúvidas que me assaltam não o tivessem assaltado a ele, e muitas mais, e teria, em mil anos que vivesse, tocado o absoluto dum panteão de deuses tão terrenos se mostraram que como se consigo tivessem partilhado conversa banal por entre um copo de ginja e um cigarro de tabaco barato? Abençoado seja o queijo bolorento que lhes entope o nariz e as veias; salve o relógio de cuco que os vai torturar hora a hora e ainda assim o levam para casa. São de queijo bolorento e de sopros de cuco as falas que destacam do mundo; que me expõem ao ridículo de mim; que me fazem sonhar, com espúria e abjeta, mas expectável vaidade, o desejo inútil e diretor que me mantém. Sem nada ser, nada serei sem a cacofonia inexistente fora de mim, pois que eu, fora dela, inexistente, sou.
Outros dias há que a lhaneza da vida que o sol inunda, descobrindo aqui e ali formas e feições, mas que na verdade tudo esconde na imensidão da sua luz, em que a vida dá ares de graciosa. Por entre banalidades de sorrisos de crianças com que me cruzo nas ruas entre a casa e o trabalho onde ritos colaborativos se vão entremeado de palavras alinhadas casualmente, vai entretida a mente. Escorrendo por entre azoios frescos de pouco pensar, tomando as águas espevitas sem serem rebeldes, bebe e sente o seu gelado contraste face ao sol sem se escandalizar e cuida estar em paz. Não conta as horas, não lambe as feridas dos outros no seu corpo branco, a dar mostras de envelhecimento, não procura as quaisquer razões onde ninguém, pelos menos intencionalmente, as enterrou. Em dias assim, a luz vem do alto, as sombras infiltram-se nas paredes, esperando outros dias e outras horas mais ao seu agrado e os fantasmas somem-se com elas para trás do que se sabe existir mas não se consegue ver. São os momentos dos fones nos ouvidos: do António a lembrar-me que é sempre tarde porque se está sempre a tempo –se ao menos o ouvisse–; do corpo sereno mas a estourar de um ritmo impossível de se manifestar por trôpega perna e canhestra pelve –se deixasse que fizessem de mim um homem supersónico–. São também os momentos da pega que galreja por entre os sons da cidade para manter perto de si o amor da sua vida –se ela soubesse como sinto o amor por ela tomar conta do que sou quando não a vejo–. São ainda os momentos dos caminhos infinitos, sempre em frente, de regresso a casa, sem olhar a nada nem ninguém, temerário perante o mundo que se junta para me levar. Os primeiros passos, aquecidos pelos sorrisos das crianças, pelas conversas casuais do trabalho e pelo António, vão seguros, distantes dos olhares, fixos nos azulejos, nos grafitis, nos turistas. Por forte que seja esse calor, as horas, o percurso e o sol, torna-o débil e o calor esvai-se, deixando menos que a sua memória, por chocar com a frieza dos olhares, com as buzinas das vozes e com as sombras que se arreganham das paredes e escorrem para os passeios e para as ruas. Aperto o prego de meia galeota na mão esquerda. Fosse de galeota e o seu portador [eu] seria invencível. Mas é de meia, pelo que, estando armado, não dispõe de argumentos para fincar o pé e resistir. Ressaltam das sombras espraiadas caravelas quinhentistas e dos chapitéus mostram-se os tratantes que sabem que um centímetro é tudo que precisam para que os seus tratos tolham e magoem. Tomam-me o encalço deixado pelos primeiros passos quentes e logo me acenam estandartes de dor. A fuga é frívola, pois a cidade é erma de agasalho. Serve apenas os turistas e os que querem comer coisas na mão ou em pratos compostos com mestria massificada. O seu sopro acusatório é corrente de maré que leva os seus tentáculos na minha direção, urticando-me as pernas. As picadas na pele e no pensamento são lancinantes. Perco-me na dor de pensar na impossibilidade da fuga sem sequer tentar fugir. Afogo-me, amarrado pela caravela que um dia me levou a ver o mundo. Mudou o mundo, mudou o dia. Instala-se o ser que questiona questionar-se. Que se sabe um viajante incógnito num mundo que o trespassa continuamente de olhares, juízos e risos e que sabendo que nada é para os demais, não consegue ver-se senão em máscaras, a estipendio da felicidade, ora estupendas, ora abomináveis.

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