O pé direito

Enquanto descia a escadaria, olhava os pés. Ora o esquerdo; ora o direito. E se o pé esquerdo lhe parecia um pé esquerdo –como o direito lhe parecia esquerdo quando se olhava nua ao espelho, chegando o olhar aos pés como que em fim de viagem, iniciada nos olhos e com passagem pela púbis desértica– e se o pé esquerdo lhe parecia um pé esquerdo, o pé direito não lhe parecia um pé direito. Inicialmente procurou não pensar nisso. Depois optou por não olhar para os pés, sobretudo o direito –tal como fazia com o peito, que nunca o olhava desnudo por ter uma ligeira assimetria, sendo isso razão para apenas o olhar quando o peito já se encontrava acomodado no soutien– mas logo apossou-se dela uma sensação que, em crescendo, começou pela estranheza e culminou na repulsa. O seu pé direito não lhe parecia um pé direito. Tão pouco já lhe parecia um pé esquerdo visto pelo viés do espelho. Continuava a descer as escadas e o seu pé era, a cada passo, cada vez menos seu. Quem lhe terá trocado o pé direito e colocado em seu lugar aquela coisa estranha? Parou por momentos e sentiu-se nauseada. Com muito cuidado, para não conspurcar a mão esquerda, tocou-lhe ao de leve com a ponta do indicador. Um vómito súbito quase a surpreendia, enquanto esfregava vigorosamente o dedo no vestido de seda. Respirou fundo; olhou em frente. O pé direito, debaixo do vestido, fazia-se agora notar por todo o seu corpo. Em língua de pé direito que ela não reconhecia, gritava a plenos pulmões, reclamando a conquista de todo o seu corpo. Começou então a sentir um formigueiro acima do tornozelo; precisamente no sítio onde, apesar de não se ver e não ser perceptível ao toque, estava a fronteira entre o que era si mesma e o que era outrem. A mão esquerda não conseguia tocar novamente no pé direito. A mão direita tomou a mesma posição. O pé esquerdo, com a conivência da perna esquerda, começou a afastar-de do pé direito. Este afastamento resultou no afastamento, por simpatia, das perna esquerda da perna direita, fazendo com que o vestido de seda deixasse de conseguir cobrir as duas pernas em igualdade, expondo, pela racha, a perna e pé direitos. Todos puderam então ver que, por baixo daquele vestido amarelo e vermelho, havia uma corpo composto por partes que ela não via como partes de um corpo; pelo menos uma. E depois; o que aconteceria se fixasse o seu olhar na mão esquerda? Se começasse a olhar com desconfiança para o braço direito; para a cabeça? Ela tentava esticar o vestido amarelo e vermelho, cobrir o que estava agora exposto, mas era impossível. Mais do que impossível, era irrelevante pois o pé direito, detectando a repulsa de que era objeto, dá-se a formigueiros, a latejamentos, a fisgadas certeiras ao sistema nervoso central dela toda. Ela esquece o vestido amarelo e vermelho, larga a correr escada a abaixo, mas o pé direito recusa correr; recusa a direção. Caem. Rebolam. É o fim de toda ela, ou apenas do seu pé direito?

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