A Folha Branca

Lembro-me que, ainda rapazola, escrevia em papel. Então, as alternativas eram poucas. Ao papel e caneta tínhamos, papel e lápis, papel e máquina de escrever (mas não para todos) ou papel e pincéis (igualmente impraticável). Podíamos ser criativos e deixar registo nas paredes (de casa e/ou da rua), na areia do mar, nos guardanapos dos cafés (que no fim de contas é papel) ou simplesmente no vento que nos envolvia numa manhã fria ou nos temperava numa tarde quente.

Quero dizer que, rapazola, tinha apenas papel para grafar a dor e a inconformidade da juventude. Não gostava de escrever nas paredes e nunca consegui apanhar as palavras que escrevia no vento. E nesses tempos, essas coisas dos PC's e tablets não tinham sequer atingido o patamar de sonhos. Como tal, e quando faltava a inspiração, culpava-se a folha branca, essa súcubo da prosa. Com efeito, a alva aridez da folha A4 era o terror do escritor e a sua melhor desculpa para não escrever. O vazio da inerte criatura, projetava-se na mente do criador, deixando-o, tal como à folha, em branco. Quem de fora, leia-se o não escritor, seja pela inveja ausente daquele (deste) talento, seja por absoluta indiferença às coisas escritas, toma a brancura da folha como um efetivo travão à criatividade do escritor. Mas só o escritor sabe que a aridez, seja de tema, forma ou conteúdo, está tão somente em si, e que a folha branca nada mais é que um estado premonitório da mente deste. A folha é, portanto, vidente da vacuidade criativa.

Agora, século XXI, já poucos escreverão em papel. Muitos em paredes, imensos no vento, mas poucos em papel. O computador, ou no caso específico deste texto, que vence a pulsões na forma de orações, o bloqueio da folha branca, a 'lousa eletrónica', como diria um qualquer dos meus avós, será hoje em dia o suporte favorito do escritor. E aqui se coloca um novo problema ao escritor e ao imaginário da escrita. E é que a folha branca desapareceu. Qualquer um, minimamente ligado ou conectado, saberá que nos processadores de texto, dos mais simples aos mais completos, a área de escrita está bordejada de menus, comandos, ícones, símbolos, marcas e linhas. A nudez da folha, enquanto incandescência produtora de cegueira criativa, deixou de existir. Tudo naqueles universos do texto, nos impelem a deitar para lá coisas (texto). Daí que, a maldição da folha branca, como a vemos agora, se revela cada vez mais como o que já desconfiávamos que fosse, ou seja, o bode expiatório da incapacidade de assumir a seca de palavras do escritor.

Por outro lado, o local de escrita também mudou. Tal como Pessoa, que gostava de escrever em pé, também eu (guloso sapateiro), gostava de escrever frente a um balcão de bar que, obras em casa, mandei destruir para acomodar um pequeno escritório (ó lástima). Poderia penar o desaparecimento do balcão, onde fiz uma licenciatura e publiquei um livro, como responsável pela penúria que tem sido a produção criativa dos últimos anos. Podia, mas não o faço, pois sei que o deserto de temas não é mais do que um ecossistema onde estacionei a minha mente.

Então, onde fica a salvação da escrita e, por conseguinte, deste escritor? Numa analogia simples, mas capaz, digna de um escritor quase inspirado, os ecossistemas desérticos são, regra geral, extremamente ricos. A noção primária de pobreza de vida, apenas subsiste pelo tempo em que insistimos em procurar elefantes entre as ervas rasteiras e sequoias atrás das dunas ou pedras. Quando desligamos o olhar do que vimos ou do que nos foi dito por quem disse que viu, um novo ecossistema, pleno, brutal e sublime, surge perante os nossos sentidos. Há que ver de forma diversa, mais atenta e valorizar a pequena planta que perseguida pela seca, tolhida pelo grilo que foi pasto da aranha, pisada e meio comida pelo órix, vingou e floriu. Vencer o drama da folha branca será então um voltar às coisas pequenas e ao grande lugar que ocupam no mundo.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fuck’in eden

O pé direito