Ruas

Não deve haver rua da minha cidade por onde tenha passado pela qual não tenha passado a pé. Passei desde as ruas mais pequenas como a Rua do Porto Santo, menos de cem metros de comprido e 3 de largura, no meio do bairro da Azenha, às Rua e Avenida da Boavista, todos os seus seis quilómetros percorridos, metade da cidade, neste e naquele troço, para cima ou para baixo, de dia, de noite, triste ou alegre. Muitas ruas me são caras, sejam por terem motivos de interesse arquitectónico e paisagístico duvidoso, como a Avenida Marechal Gomes da Costa, interesse comercial, como a rua das Flores, ou que foram marcantes de alguma forma na minha vida, como a Rua do Godim, que me levava da escola de volta a casa envolto em silêncio, mesmerizado pelos muros de pedra antigos. Já outras são especiais por aquilo que elas suscitam e que nada têm que ver com a rua em si, o seu nome ou as casas ou comércios que as compõem.

É exemplo disso, a Rua Álvaro de Castelões. Mesmo tendo por lá passado muito poucas vezes, e apenas para chegar à Rua de Costa Cabral, esta rua sempre me fez lembrar as leitarias e queijarias antigas onde se lanchava e onde, das máquinas de café e de leite, saiam vapores em nuvens e em silvos, e nos assaltam presenças de queijos de aromas quase pungentes oriundos das vitrinas quentes, tapadas com panos beijes ou cor-de-rosa. Porquê? sei lá eu.

A Rua do Bonjardim, particularmente o troço entre a Rua Formosa e a Rua Fernandes Tomás, tem um significado bem diferente. Tão diferente como a frequência de passagem entre uma e outra. Esta é uma das minhas ruas preferidas. Uma pelas quais mais passo desde que ando sozinho pela cidade. É muito frequentada e percorrida por muito tipo de gente, tem prédios grandes e outros pequenos, tem comércio e tem habitação, lojas novas e lojas antigas, tornando-a, ao mesmo tempo, uma rua sempre nova mas sempre familiar. Interesso-me sobretudo por três coisas nesse troço da Rua do Bonjardim: alfarrabistas, ferragens e putas. Vindo da Praça de D. João I, sentido ascendente, há a Casa Januário e metros adiante começam a aparecer, em alternância, os alfarrabistas, as casas de ferragens e os Sobe-e-desce. Volta e meia entro num alfarrabista e compro um fascículo do Agostinho ou um fascículo do Mosquito. Paro sempre nesta montra com chaveiros brilhantes, cofresinhos de caixa esmaltados e Continuo subindo com a revista aberta, um olho na literatura, outro na porta da Hospedaria do Bonjardim, ou melhor na puta, qualquer puta mamuda que fuma, alheada como peça de roupa em montra, encostada à porta do sobe e desce. Nunca subi, sou um rapaz artesanal, sem disposição nem rendimento para tais indulgências. Como olhar não paga e o pecado por olhar é ligeiro, olho, de soslaio uns dias, à descarada noutros. Tiro medidas, faço conjecturas e sorrio. Visto de um ponto de vista simbólico, este curto troço da Rua do Bonjardim traz-me a noção de reutilização. Por um lado, livros reutilizados, saber revalorizado, bons preços, sentido de aventura por percorrer os estreitos corredores ladeados de pilhas de livros empoeirados e a possibilidade de descoberta daquele livro que nos vai abrir os olhos para um mundo novo. Por outro, mulheres continuamente reutilizadas, sexo ecológico se praticado com os devidos cuidados, de resto idênticos aos de percorrer os corredores dos alfarrabistas, isto é, não puxar por nenhum livro de uma pilha sem a acondicionar primeiro, e acondicionar a pila antes que comecem a puxar por ela. E ecológico também, pois casos haverá em que preserva o ecossistema matrimonial. As lojas de ferragens, com as suas chaves e fechaduras, completam o simbolismo da coisa, enquadrando as minhas atitudes perante os objetos: as primeiras abrem-me o acesso a um pouco mais de cultura, as segundas, dado o tipo físico, mantêm intacta a noção que tenho de uma relação simbiótica entre sexo e amor.

A Rua do Almada será a minha favorita. Desde pequenito que a percorro entre a Rua Ricardo Jorge e a Livraria Educação Nacional, para depois, pela Rua da Fábrica, ir ao oculista. Foi na Rua do Almada que conheci o Homem de Metal e a Senhora que, de bíblia na mão, insultava e amaldiçoava todos os que passavam por ela. Foi nessa rua que segui na peugada de gente que falava sozinha, por ter perdido o dinheiro todo no bingo do Salgueiros, por o marido ter desaparecido, por terem perdido a esperança, por não saberem encontrar a Portuense de Sucatas, por terem um interlocutor imaginário do outro lado da rua. Como se soubessem que ali estão no seu elemento natural, dão asas à loucura e vociferam e gesticulam e mostram-se desinibidos, como se aquela não fosse uma rua, nem um hospício, mas a sua casa. Casa onde não se lhes aponta o dedo, recrimina ou tenta corrigir. Sempre me senti feliz na Rua do Almada, como se aí tivesse nascido e crescido entre os seus doidos.

Calcorreio a Rua das Flores desde pequenino. Conheci os seus armazéns pela mão do meu pai que, vendedor convincente, era cobiçado e passava de um para outro, até se tornar vendedor de quase todos. A minha mãe abastecia-se semanalmente numa mercearia de cujas memórias me ficaram apenas as caras de bacalhau em cestos de vime à porta, as dezenas de garrafas de bebidas alcoólicas nas montras pequenas e os toldos Porto Cruz. No Chaminé da Mota, maravilhava-me (e sigo maravilhado) com ecos de um mundo que já não existe, ou que nunca existiu senão nos devaneios dos sonhadores, ouvindo vozes longínquas em tubos de Edison, tomando o peso a capacetes de guerra Nazis e folheando manuscritos que se tornavam progressivamente ilegíveis a cada página, fruto do cansaço e embriaguez dos copistas que os lavraram. Aquela era uma rua de trabalho e todos trabalhavam nessa rua: nos balcões dos armazéns, nos carretos para cima e para baixo, nas rifas passadas a uma esquina ou mesa de restaurante ou leitaria. Era uma rua de trabalho. Só lá se ia para trabalhar, comprar ou visitar um trabalhador. Mesmo aqueles, cegos a uma esquina tocando acordeão ou que percorriam a rua do Largo de São Domingos à Estação de São Bento de mão estendida, pediam esmola para sopa ou leite para os filhos, achando quem dava que era para cigarros ou vinho, faziam, pelo menos naquela rua, da arte de pedir um modo de vida, tendo regras e horários a cumprir, mostrando brio na música tocada, na lamuria de pedir, no uso de andrajos de denotassem pobreza mas não tão fétidos que afastassem a “clientela”. Também esses estavam lá a trabalhar. Até eu, pequenino, quando ia à Rua da Flores, sabia que era para alombar. Fosse uma mala mais pequena do mostruário do meu pai, fosse algum saco de compras, sempre com algum carrego eu entrava ou saía daquela rua. Havia uma livraria onde as histórias saltavam das páginas dos livros, agora é um café. Havia uma leitaria que cheirava a bolos e a queijo bom; onde a senhora não deixava fumar, agora é mais uma loja de chinês. Havia armazéns onde os empregados roubavam no metro mas eram simpáticos, sabiam o nosso nome e faziam sempre desconto, agora estão fechados e as montras recuadas servem de quarto aos sem abrigo. Havia a loja das sementes onde, por tostões, se comprava a Primavera, agora é uma eletrónica barata. Havia as pedras da rua refletindo a luz do sol da tarde os prédios, juntinhos, fazendo sombra, e ainda os há.

Comentários

Gostei linguagem simples semi coloquial, bem interessante. Parabéns

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