O boi

Aquela manhã era o prolongamento do sonho da noite. Mal tinha começado e já estava bem desperto e cheio de fome, atravessando os campos entre a minha casa e a casa dos meus avós, antecipando o pequeno almoço. Uma espessa névoa repousava sobre os campos, mística, densa, permitindo ao sol apenas uma réstia da sua grandeza, um começo humilde para, mais tarde, se tornar ingente. Das hortaliças pingavam gotas de água em camarinhas. A vinha, ao fundo, coberta de gotas, quase cintilava. Do lado oposto, os limoeiros e as laranjeiras tilintavam num gotejar incessante da água que se desprendia das folhas e caía no chão fresco ou rolava pelos frutos ao encontro de mais água. Onde a torrentezinha se adensava, pequenas poças se formavam, acolhendo gotas e mais gotas. Os meus passos chapinhavam pelo carreiro ensopado. Nada via para além de mim. Apenas adivinhava as hortaliças, a vinha ainda sem frutos, os limoeiros carregados à força de sábia paulada da mãe e as laranjeiras carregadas graças à poda do pai. Não tinha medo de ser o único menino do mundo; o único ser humano do mundo naquele momento. Estava habituado, e não era nada de mais um pequeno, numa pequena aldeia, só, num percurso pequeno, entre lares, antecipando o pequeno almoço.

Já vos disse que estava nevoeiro? Estava. Era fechado e muito húmido, amplificando os sons do campo. As gotas que caiam aqui e ali, soavam a ferrinhos; o coro das lavadeiras, cantando e batendo a roupa nas pedras do rio, frenéticas para não perderem pitada do sol, assim que ele chegasse, vinha lá do longe e trazia-mas até mim; os pássaros chilreavam dentro da minha cabeça de modo a que não sabia onde pousava o pisco, onde se escondia o melro, de que pombal rufava a rola, de que alpendre chamava o canário; a dona Deolinda tinha aberto o cabril e seguia já com o rebanho que chocalhava monte acima, antecipando o pequeno almoço. E depois havia o arfar forte da mãe Terra que se sobrepunha a todos os outros sons e deixava-me inquieto.

Marchava feliz, tendo por horizontes mãos e pés. Pela frente, tinha apenas as lentes dos óculos, recamadas de gotículas, e para lá delas, a névoa. De repente um vulto. Enorme. Escuro. Arfante. Um boi. O boi do Manel maneta. Não o próprio sr. Manuel, homem mais rico da aldeia, que por obra de um raio-X manhoso se viu diminuído no físico e na dignidade, mas sim o mais temido dos seus animais, o Brazabu. Deu-lhe este nome o meu avô, homem duro de ouvido, que lhe pareceu ouvir, um dia, ao padre falar nas tentações feitas ao Salvador por Belzebu. E como, a juntar à surdez, dormia durante a missa, ficou-lhe o nome do Cão como sendo, Brazabu. Ora o boi do Manel maneta cedo na vida deu mostras de grande fereza, marrando nos irmãos e irmãs, correndo com tudo que mexesse. Foi um passo até ao baptismo. Pois era o boi, o bestial Brazabu que estava à minha frente. Bufando a condensação pelas ventas em jorros, como se fosse ele o criador de toda a névoa. Todo ele troava, terrento e terrífico. Pingavam gotas da argola pendendo do nariz, das orelhas caídas, dos cornos emproados. Batia com a mão no chão e sulcava a terra. Não via o gesto, apenas sentia o seu impacto, vindo do chão, a trepar por mim acima; estaquei. Fiquei quietinho, a olhar para ele. Eu era o único ser humano da terra. Só eu e o boi. A batalha, a existir, será épica, digna de ser cantada por poetas, pintada a ouro por artistas, demarcada do morredoiro por historiadores. Até então sabia-me imortal, desprendido do tempo, um menino num espaço sem início nem fim, num tempo sem antes nem depois. Nunca ninguém me morrera, nem um cão ou um gato por que tivesse mais apego; era um menino que brincava e pulava, que dormia e estudava, onde nada havia mudado no mundo desde o dia em que nasci. Na minha aldeia vivia-se com a morte, mas uma morte pelas nossas mãos, controlada. Somos deuses decidindo o destino dos bichos, jogando com a sua linhagem, cruzando plantas, favorecendo umas, ceifando outras. Mesmo pequenito, galinhas, patos e coelhos me tinham a vida penhorada, lesto que era traçando pescoços a golpes e a cacetadas certeiras com a soca da avó. Neste momento, sem o saber e talvez sonhando-o anos mais tarde, eramos Ápis contra Khnum, o Modelador, a Terra, a Natureza, contra a criatividade e o vigor humanos. Ficamos anos nos observando, irredutíveis. Ele bufando e batendo com a mão. Eu tremendo e cerrando os punhos. Ainda hoje me pergunto sobre o desfecho desta batalha.

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