O prego

Durante algum tempo, conservei um prego. Um prego de galeota. Um prego para madeira  Um pouco maior que uma mão travessa. Um prego grande, para madeira. Usado na construção civil. Os trolhas, e demais artistas, da argamassa e do piropo, usam-no para suster cofragem, montar andaimes, fixar barrotes, improvisar bancos para o almoço, abrir a mine e para o mais que possa um prego ser chamado: vazar um pé; cravar-se num traseiro; furar o pneu ao mercedes do pato bravo; impressionar, pela negativa, a dona da obra, que acha que só com aqueles preguinhos não se vai segurar a moradia; servir de ponteira para riscar azulejos e tijoleiras e mais que não recordo, mas que, perguntando a um trolha, a um pedreiro ou a um servente, muitos outros usos lhe acharão. Já eu não lhe dava qualquer um desses usos. Tão pouco o usava para riscar coisas como carros ou vidros, não o usava para tirar o serôdio das orelhas ou a côdea das unhas. Conservava-o. Só isso. Andava com ele na mão, como que espetado, entre o médio e o anelar, cabeça assente na palma, ameaçador, diria agora; manipulava-o tipo ilusionista de proximidade, passando-o pelos dedos, atirando-o ao ar em número de voltas sucessivamente maior; levava-o no bolso das calças, para desgosto de minha mãe; metia-o no estojo da escola quando chegava a casa. Tirava-o juntamente com os lápis e canetas para estudar ou para fazer os trabalhos de casa, o que não é a mesma coisa, e no final voltava a guarda-lo juntamente com os mal amados instrumentos de estudo. O facto de andar com o prego na mão, ou para o efeito, andar simplesmente com um prego, suscitava reacções curiosas por parte dos colegas de turma e de catequese (Sim! Catequese. Para aí até aos dezassete anos). As mais interessantes eram aquelas que se voltavam para uma natureza ímpar do prego, quiçá mítica, em detrimento daquelas que focavam o sujeito que o ostentava. Dava-me imensa satisfação vê-los procurar singularidades num vulgar prego. Pegavam nele, davam-lhe voltas e mais voltas, perguntavam se tinha algo de especial ou diferente na sua produção, se era de prata ou tinha outra composição preciosa. Mas, quando respondia que era um prego vulgar, de vinte e cinco tostões a grosa, não satisfeitos perguntavam se tinha sido importante, ou mesmo vital em determinado momento da minha vida, se me tinha salvo de queda em altura, se resistiu quando outros falharam e evitou, sozinho, um desabamento. Respondia negativamente e, surpresos, perguntavam então porque diabo andava eu com ele. Respondia porque sim, que era um prego e isso bastava. E aí a chegava a hora. Especulavam, urdiam, gozavam, bisbilhotavam, apiedavam-se, revelando importantes traços de carácter. Nunca nenhum se deu conta que não era pelo prego, mas por eles. À falta de motivo por mim fornecido, inventavam histórias, situações, carências e demências. Houve uma rapariga que viu na cabeça do prego as minhas iniciais, outro fez um trabalho para português sobre o rapaz do prego, e muitos achavam que estava tolo ou que queria dar nas vistas. Provavelmente. Mas, o que me divertia, eram as histórias que corriam à conta do preguito. Os profs. também achavam que o prego servia para chamar à atenção, e servia. Para o prego e para quem dele, e do dono, falava; de lá para cá e não de cá para lá. Ainda hoje me intriga a comoção gerada pelo prego. Pediam para andar com ele ou ficar com o prego durante as aulas, roubavam-mo esperando que perdesse a calma. Deixava-os levar o prego e, passados alguns dias, lá aparecia, devolvido ou encontrado. Uma colega achava que o prego lhe dava sorte nos testes e espetava-o na carteira mesmo em frente a si. Outro, trouxe um prego igual para a escola. Os profs. estavam lá para debitar e facturar, estranhavam mas não ligavam nenhum.

Nunca o disse, mas perdi o prego umas três ou quatro vezes. O primeiro prego, o original, estava lá para um canto da casa, ou então achei-o na rua, já lá vão quase trinta anos e não me lembro. Sei que quando o perdi, fui à drogaria da Corujeira e comprei uma manadinha deles. Como eram todos iguais, achavam que conservava o mesmo prego, o que elevava o objecto à condição de mascote, amuleto, muleta, arma de arremesso ou objecto de substituição. Os pregos, digo-o agora no plural, foram verdadeiros instrumentos de análise sociológica. Chaves para um melhor entendimento da condição humana, permitiu-me observar o observador, avaliar o que avalia, procurar compreender o que tenta entender ou o que apenas reage. Foi divertido, mas por vezes difícil. No grupo de catequese, a orientadora, coitada, achou que estava deprimido e doente. E com fúria cristã, congregou o grupo à minha volta para que não nos perdêssemos. Acho que se referia a mim e ao prego, o que era preocupante, vindo de uma professora primária. Tive que lhes explicar porque raio tinha o prego. Deitei-o pela janela, para um silvado, e ainda assim não me largavam. Achavam, achava a senhora, que o prego era uma dependência que tinham de combater por mim, ou apesar de mim, o seu amigo. Houve um, meu amigo sem eu o saber, que chegou a dormir debaixo da cama para que arrepiasse do caminho do prego. Outra, tão simpática, achava que era por devoção a Cristo que mantinha o prego, o martírio, tão próximo. Que maná sociológico. Não entendiam o prazer que tirava dos risinhos, das piadas, da incompreensão, da pena, da simpatia, do menosprezo.

Em finais de 2008, durante as arrumações sazonais, encontrei uns pregos numa caixa com quase 30 anos. Vou guarda-los para quando terminar o mestrado em antropologia.

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