Transformação

Então diz-me lá; consegues transformar-te no que quiseres? Sim, consigo; mas com uma restrição importante. Qualquer coisa? Qualquer coisa, não; qualquer ser vivo; mas, como já te disse, com uma restrição importante. Pois, se te transformasses numa cómoda, iria ser difícil teres força de vontade para voltares à tua agradável pessoa. Sim, seria complicado. Posso pedir-te que te transformes nalguma coisa? Podes. Ok; transforma-te numa borboleta; daquelas grandes, de um azul iridiscente. é que está; em borboleta não posso. Mas disseste que te podias transformar em qualquer coisa. Sim, e posso; mas é aqui que entra a restrição importante; deves previamente compreender que a minha transformação é feita ao nível molecular; ou seja, não se trata de uma metamorfose ou uma habilidade de um qualquer extraterrestre dos filmes de ficção científica. Então? A minha transformação implica uma reorganização integral de todas as moléculas do meu organismo; o que quer dizer, para responder à tua pergunta, que se me transformasse numa borboleta, seria uma borboleta de, mais ou menos, 70 kilogramas, logo, fisiologicamente inviável; isto é, morreria esmagado pelo meu próprio peso ou asfixiado pois os insetos dependem da pressão atmosférica para que o ar entre por uns pequenos orifícios que percorrem os lados do seu abdómen permitindo as trocas gasosas no organismo; uma borboleta de 70 kg, morreria. Estás a dizer que o bicho em que transformas é sempre um bicho do teu peso e tamanho? Peso, sim; tamanho, mais ou menos; repara, é uma questão de física; eu tenho uma determinada massa, representada sobretudo por matéria; essa matéria, num dado momento, pertence-me e, ao transformar-me não me é possível abdicar dela pois seria irrecuperável; do mesmo modo, ao transformar-me, não me é fisicamente possível incorporar matéria que naquele momento pertence ao resto do Universo; compreendes? Acho que sim; então, se percebi, se te transformasses num elefante, e isso deverás conseguir, serias um elefante de 70 kg. Ora nem mais; um mini elefante, para delícia da canalhada. Mas há uma coisa que ainda preciso que me expliques; se a tua transformação é molecular, tudo muda; ou seja, os ossos não são os teus ossos alterados e os olhos não são os teus olhos alterados. É isso, há uma reorganização molecular. Pois, se tudo é diferente do que era, cérebro incluído, como manténs memória de ti mesmo? onde fica a tua consciência? Não sei; não tenho memória do que experiêncio quando me transformo, com muita pena minha; como te disse, isto não é como nos filmes, onde o bacano muda para um bicharoco estranho e faz o que não conseguiria fazer na sua forma original, fiel à sua consciência e propósito; por exemplo, se me transformasse num leopardo, com a fome que tenho neste momento, o mais certo seria trinchar-te e apenas daria conta disso, quando, de volta a mim, horrorizaria perante o teu corpo trinchado. Não queremos isso; tenho apego à minha pessoa, membros incluídos; mas agora pergunto: se perdes a consciência de quem és nas tuas transformações, como a recuperas quando regressas ao teu elegante ser? Quer me parecer que ainda não percebeste está coisa do que é meu (ou teu) e do que é do universo; contrariamente à noção popular, e não só, a consciência, ou espiríto, ou alma, não está fora do contexto do organismo; não é algo que habita o corpo físico, nem reside numa dimensão diferente das três que nos regem; a consciência é química e são células e cargas elétricas entre elas; tudo o que sou, tudo o que cada um de nós é, é o conjunto das suas memórias e das considerações que sobre elas, a todo o tempo, fazemos sobre elas e sobre a informação que recebemos e processamos; esse processo contínuo reverte para processos físicos que vão literalmente alterando o cérebro, como que o escrevendo continuamente. Tenho dúvidas quanto a isso; então a imortalidade da alma? À luz do que sabemos, esse conceito é fantasioso. Dizes então que não foi deus que nos criou? Diria que fomos nós que criamos deus. És um parvo! Eu sei, tem um bom dia.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

De partida, chegada